Couto Viana, João Aguiar e Saramago
A memória das palavras
Viana, Aguiar e Saramago
Junho foi um mês que nos roubou algumas figuras das letras e de proa da literatura portuguesa. Cada um à sua maneira marcou a época com as suas obras e as suas ideias sobre o modo de entender as coisas e de ver as pessoas e o mundo.
1. António Manuel Couto Viana
O poeta, contista, ensaísta, actor, dramaturgo, encenador e figurinista tinha 87 anos, nasceu em Viana do Castelo e faleceu no passado dia 8 de Junho. Fez os seus estudos em Viana do Castelo, Braga e Lisboa e desde cedo revelou o seu interesse para e pelo teatro, começando por colaborar no Teatro Estúdio do Salitre como actor, cenógrafo e encenador. Dirigiu outros teatros e a Companhia Nacional de Teatro. Foi actor, encenador e mestre de arte de dizer e de representar, colaborando também com a Televisão para a qual fez alguns programas. Estreou-se em 1948 na poesia com o título Avestruz Lírico integrando-se no grupo Távola Redonda e colaborando na revista Graal. Com a sua poesia integrou-se no grupo de autores que se opôs ao neo-realismo através da opção pelo culto do passado, da paisagem e dos amores “ingénuos”. Como disse José Jorge Letria por alturas da sua morte foi um homem «cioso do detalhe, que trabalhou a memória da poesia e foi um poeta de grande mérito que voltou a ter destaque na última década e meia, porque o seu percurso foi sempre discreto por razões ideológicas, por ser um homem de direita». Os seus poemas estão traduzidos em espanhol e em inglês e recebeu várias distinções pela sua obra: Prémio Antero de Quental, Prémio Nacional de Poesia, Prémio Fundação Oriente, Prémio Academia das Ciências de Lisboa e Prémio de Poesia Luso-Galaica.
Nos últimos anos, voltou à ribalta das letras com dois livros de contos, “Os Despautérios do Padre Libório” e “Que é que eu Tenho Maria Arnalda?” e o livro de poemas “Ainda não”.
2. João Aguiar
Faleceu no dia 3 de Junho, em Lisboa, este jornalista e escritor ligado à recuperação do romance histórico deixando-nos vários romances, entre outros, A Voz dos Deuses, O Homem Sem Nome, Os Comedores de Pérolas, A Catedral Verde ou O Jardim das Delícias. Frequentou os Cursos Superiores de Direito e Filosofia em Lisboa e tirou Jornalismo em Bruxelas, onde deitou mão a vários trabalhos, como lavar escadas. A ânsia da escrita “nasceu-lhe” na infância quando a mãe o ensinou a ler para o manter sossegado na cama devido a doença. No entanto, só aos quarenta anos publicou o primeiro romance, “A voz dos deuses”, ficção centrada na figura de Viriato. Seguiram-se outras obras sobre figuras históricas como Sertório, passando mais tarde a localizar as suas narrativas em Macau, caso de “Os comedores de pérolas” e “O dragão de fumo”. Também a literatura infanto-juvenil lhe despertou a atenção, não só pela colaboração na tradução/adaptação da série “Rua Sésamo”, como também pela criação das séries “Sebastião e os Mundos Secretos” e o “Bando dos Quatro”. A paixão pelo jornalismo sempre o acompanhou e nela nasceu provavelmente o gosto pela narrativa histórica e pela sua escrita corrente e fluida. Na sua autobiografia e utilizando a ironia que usava tão bem, escreveu: “A minha vida não dava um livro, e ainda bem. Em compensação, o facto de os meus livros darem uma vida — boa ou má, não importa para o caso - , esse facto devo-o, em grande parte, aos momentos meus de não-glória.” (“Jornal de Letras” em 2005) O Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores ao lembrar a sua morte referiu: “Trata-se de uma grande perda no plano literário e cultural. O João Aguiar era um grande escritor, dos mais importantes das últimas décadas em Portugal, com uma obra reconhecida pela crítica e pelo público, era um escritor profissional, com muitas edições dos vários livros que publicou, era um escritor de êxito. Era um homem de uma grande exigência, uma grande capacidade de trabalho, de uma grande seriedade intelectual e também um homem de princípios muito fortes e também com uma ligação muito forte e intensa com Portugal, a sua memória e os seus valores”. Os seus livros encontram-se traduzidos em Espanha, Itália, Alemanha e na Bulgária.
3. José Saramago
A 18 de Junho faleceu, em Lanzarote, este escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Conhecido do grande público a partir da década de oitenta deixou o jornalismo por essa altura para se dedicar em exclusividade à escrita. Cultivou a narrativa com incursões várias pela história sob o ponto de vista da ideologia que sempre professou: a força do povo. Nesta linha, o seu mais célebre romance “O Memorial do Convento”, destaca como personagem colectiva o povo trabalhador, requisitado à força para as obras de construção do convento de Mafra e sem a qual ela não teria sido possível. Claro que a visão saramaguiana da História é um pouco redutora, eivada de uma ironia constante, especialmente no que diz respeito à importância e ao papel da Igreja. Essa atitude valeu-lhe o confronto aberto com a mesma Igreja e com outras instituições eivadas de valores ligados ao personalismo cristão. Mas como referiu o Padre José Tolentino, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa: “Sem dúvida, a acusação que Saramago faz ao cristianismo é muito mais ao institucional, ao poder histórico, do que propriamente ao cristianimo messiânico de Jesus de Nazaré”
Polémicas à parte, Saramago foi um pioneiro no mundo da escrita e esse papel é incontestável: criou um estilo próprio que o levou a ser conhecido no mundo inteiro e que lhe valeu a atribuição do Prémio Camões, em 1995, e do Prémio Nobel da Literatura, em 1998. A sua morte é uma perda para a cultura portuguesa porque como lembra Carlos Reis: “Com José Saramago” desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal”. Já Eduardo Lourenço afirma que Saramago “imaginou uma arquitectura romanesca que é uma espécie de inversão de signo da tradição mais canónica das nossas letras, construiu um mundo ao revés, que era, para ele, o mundo às direitas, reviu a história de Portugal e da Península – a história dos árabes que poderíamos ter sido –, e reviu a história da modernidade numa espécie de apocalipse.” (Público, 18.06.2010) Os seus livros estão praticamente traduzidos em todo o mundo.
[Texto publicado a 08.07, no jornal "A Guarda"]