Somos folhas breves onde dormem aves de sombra e solidão. Somos só folhas e o seu rumor. Inseguros, incapazes de ser flor, até a brisa nos perturba e faz tremer. Por isso a cada gesto que fazemos cada ave se transforma noutro ser...
"És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças..."
Miguel Torga, Sísifo.
Estes dias que vivemos arrasaram as mentes e danificaram certamente o raciocínio de algumas pessoas. Muitas mesmo. A célebre frase do início "vai ficar tudo bem", está a revelar-se uma mentira fabulosa, sim de fábula. Foi transformada num mito, pois o que hoje em dia verificamos, é que as pessoas em vez de melhorarem no seu humanismo tornaram-se muito mais radicais. Como é possível retirar livros clássicos consagrados pela fruição de milhões de leitores de listas com o argumento falacioso de que são racistas? Então vamos renegar "Os Lusíadas" porque são uma epopeia colonizadora? Ou banir a "Peregrinação" porque ofende os malaios, os indonésios e outros povos maltratados pelos portugueses no Oriente? Sejamos sensatos. Aqueles que se dizem antirracistas e derrubam estátuas por causa de representarem colonizadores ou esclavagistas não estão a cometer um crime de lesa-história? Essa estátuas lembram precisamente o mal que foi feito e podem levar-nos a evitar que volte a suceder. Os livros que representam a história literária de um povo são ficção e por isso são património da humanidade e devem servir-nos de lição para não repetirmos os erros de outras épocas. Não haverá racismo impregnado nas mentes que provocam estes actos? Por detrás das manifestações antirracismo quantas mentes racistas imperam? E os governantes não estarão a tolerar aquilo que pode vir a ser pernicioso para a sociedade? Se somos humanistas não devemos olhar a cor da pele, nem a cor dos olhos, nem a religião professada. Devemos pensar que do outro lado está um ser humano e é por isso que deve ser respeitado nas suas liberdades e nos seus direitos. Quando nos esquecemos disso - e parece que hoje nos esquecemos facilmente disso - nascem os fanatismos, as opressões, a limitação do pensamento. Se as pessoas lessem mais e pensassem por si em vez de se deixarem "lavar mentalmente" pelos programas televisivos de entretenimento reles que só veiculam não-valores e pensassem que as televisões e as redes sociais exploram e transmitem apenas aquilo que interessa ao(s) poder(es) instituído(s), o nosso mundo seria bem melhor. Daí os versos em epígrafe do poeta: "És homem, não te esqueças!"
A mão aberta já não liga E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas. Há nos meus olhos dois poços Na paisagem Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas. E é noite. No meio do escuro peço Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos Levo-a à boca e das chamas bebo Água
Agora que o silêncio é um mar sem ondas, E que nele posso navegar sem rumo, Não respondas Às urgentes perguntas Que te fiz. Deixa-me ser feliz Assim, Já tão longe de ti como de mim. . Perde-se a vida a desejá-la tanto. Só soubemos sofrer, enquanto O nosso amor Durou. Mas o tempo passou, Há calmaria... Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz seria Matar a sede com água salgada.
Brinca enquanto souberes! Tudo o que é bom e belo Se desaprende… A vida compra e vende A perdição, Alheado e feliz, Brinca no mundo da imaginação, Que nenhum outro mundo contradiz! Brinca instintivamente Como um bicho! Fura os olhos do tempo, E à volta do seu pasmo alvar De cabra-cega tonta, A saltar e a correr, Desafronta O adulto que hás de ser!
Há 25 anos não havia trovoada, nem condições para existir, mas a notícia caiu em nós com os efeitos dramáticos da perda. O teu coração parava, depois de uma luta persistente. Deixava-nos a tua essência de pai, orientador da família, de nós. O teu espírito permanece connosco, hoje à distância destes tempos vividos. Continuas vivo porque te lembramos, porque estás em nós, porque estás connosco. Ainda. Enquanto houver memória.
Hoje, quase à beira do fim de um maio específico
fico à espera que a noite te devolva a vida
roubada num dia final como hoje.
Busco em mim as memórias de ti
e vejo-te
no tempo da aldeia
dominante no espírito honesto
de quem doma a terra
dando exemplos pelo exemplo.
Anoiteceste um dia como hoje.
As memórias de ti espalharam-se
pelos espaços que ainda são teus:
a casa, o chão, os cômaros,
os lameiros, os pinhais, ...
sei lá, os espaços marcados
pela tua ternura paterna.
A lua continua lá, mas já não é a mesma.
E a noite opaca revive-te apenas na memória dos gestos.
Falta a luz dos teus olhos na paisagem: O oiro dos restolhos não fulgura. Os caminhos tropeçam, à procura Da recta claridade dos teus passos. Os horizontes, baços, Muram a tua ausência. Sem transparência, O mesmo rio que te reflectiu Afoga, agora, o teu perfil perdido. Por te não ver, a vida anoiteceu À hora em que teria amanhecido.