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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Lugares

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Regresso devagar aos lugares da minha infância

Lentamente para poder saborear

Os aromas, as brincadeiras, a abundância

De carinhos, as paixões e o luar!

 

J M

Pausa

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Um dia é preciso parar,

a vida exige uma pausa.

 

O silêncio sabe-nos bem. Olhar

para trás e saber a causa,

inventariar o tempo. Esperar.

 

Esperar o quê? Tanta coisa:

às vezes o que merecemos

outras vezes o que não queremos;

às vezes o que desejamos

outras vezes o que evitamos;

às vezes a alegria

outras a acre azia; …

 

 E quem melhor que a noite,

secretária de meus cansaços,

que nos silêncio nos acoite

no aconchego dos seus braços?

 

Há dias em que temos de parar!

 

J M

 

Prece

Senhor, sinto-me hoje perdido:

já não há paz, não há sossego,

vivo na inquietude, desiludido

com o homem que só impõe o medo.

 

Do oriente ao ocidente tudo muda,

a fragilidade é nossa companheira,

a rapacidade é comum e pontiaguda,

 a vida é efémera e passageira.

 

Que esperança, então, pode sobreviver

neste universo corrupto em decadência?

O dinheiro, as finanças e o poder

vão destruindo os limites da decência.

 

Resta a esperança de que a chama vinda

das cinzas leves da Fénix imolada

renasça a ordem e mantenha ainda

a hipótese da ressurreição desejada.

 

J M 03.2017

Pilar

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(Foto de Carlos Adaixo)

 

Um pilar apagado

sustenta o céu cinzento

entrecortado

por olhos de vento

espreitando

desperto entre nuvens

entrelaçando

os dedos divinos

sistinos

(de Miguel Ângelo).

 

Sentado no banco sombrio

Deus prepara a recriação

de outro Adão

mais humilde e sóbrio.

 

J M 10.03.2017

Medo

Deixei-me levar p’la aventura do medo,

vivi experiências desertas de fugas,

fechei as portas à vida e à morte,

tranquei-me por dentro do desespero.

 

Vigiei pedaços de aventura louca,

corri paixões à espera de lucro,

no fim de tudo não ficou nada

porque a ânsia era desmedida.

 

Gastei pedaços à espera do tempo

mas este fugiu para fora de mim

e na tarde infinita do sábado imenso

encontrei-me só num mundo-penedo.

 

Louvei aos montes a sua grandeza

cantei à vida a grande desgraça,

perdi-me tonto na hora da natureza:

fiquei parado na aventura do medo.

 

J M

30 anos! (2)

O pintor morreu

envolto em rosas de maio,

olhando os meninos do Bairro Negro,

cantando os cravos rubros

de um abril florido.

 

Em Grândola poeta-libertador,

dum povo adormecido,

na longa noite de 33;

em abril soldado em flor

que desabrochou a 24,

numa manhã ingente e fresca

florida em liberdade.

 

Na noite, cantor-maldito

de vampiros e eunucos

cuja voz rompeu os tímpanos

de absurdos assombros:

Peniche, Caxias, Tarrafal.

 

Em Coimbra, amigo do vento

levado do Choupal à Lapa

nas brisas ternas dos sonhos

até aos filhos da madrugada.

 

Em Portugal poeta-músico

cujo machado não corta

a enraizada lembrança

gravada a palavras-fogo

no peito da nossa memória.

 

E se alguém se enganou

com seu olhar modesto

verá correr as águas claras

dos mananciais da música

que guardam perenemente

a timbrada voz universal

de abril-liberdade!

 

J M (23.02.1987)

Promessas

Caminho na luz débil do entardecer

ao longo da praia do teu corpo;

no horizonte ouvem-se a descer

as pregas do teu silêncio. Porto

 

de abrigo, o teu aroma perfumado

rescende à seiva da terra ávida

no pousio de um inverno gelado

preparando o renascer de calma vida.

 

Rebentos, as tuas mãos remetem

às colheitas fartas lá para setembro;

agora, vejo teu perfil estampado

 

no início de nova criação e lembro

as primaveras havidas no passado.

As curvas dos beijos tanto prometem!

 

J M - 19.02.2017

A poesia quer-se a horas decentes

                                                  para o Luís Filipe Cristóvão

 

Éramos os últimos

no café quando decidimos

regressar.

 

Os nossos passos — trocados

pela hora a mais que a lei do tempo

impõe — percorreram as ruas

desertas, onde a qualquer momento

esperei ver um coiote

atravessar-se no caminho,

não perguntes porquê.

 

No hotel entrámos a rir,

a falar alto.

 

Evocávamos sem saber

as ninfas desse rio Tago

cujo nome soa melhor

em português.

 

Até que alguém apareceu

e pediu silêncio.

 

Por qualquer motivo tínhamos esquecido

que a poesia quer-se

a horas decentes.

 

manuel a. domingos, em Sulscrito, Revista de Literatura, nº 2, Faro: ARCA – Associação Recreativa e Cultural do Algarve, 2008, p. 12.

ORLA MARÍTIMA


O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo das avenidas
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo

*Desesperança

Essa criança esquelética e nua

que encontramos às vezes por aí,

chama-nos egoístas a mim e a ti

quando nos cruzamos com ela na rua!

 

O rosto ansioso,

a avidez do olhar,

as rugas da face,

a tristeza da pele,

atiram-nos pedidos

em apelos mudos

no sulco profundo

da sua voz sumida.

Suas mãos ósseas

rasgadas nos caixotes

e que no lixo sobrevivem,

levantam-se caladas

numa prece angustiante,

num apelo premente

que os humanos não ouvirão!

 

Criança! Agora apenas criança!

Mais tarde quiçá marginal,

mero mas impressivo sinal:

o mundo é sem-esperança!

 

J M