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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

POEMA NONO

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Os versos mais pobres
canta-os o melro na sua desgraça,
aqueles que resistiram a um silêncio apedrejado
e se tornaram bocados de saudade.
É também negra a respiração do melro,
dela chega o fraco rumor da noite se o dia se gasta
no bico ansioso. O melro aprende
de baga em baga.
O coração do melro
senta-se à mesa da primavera
rodeado de canções. E canta
com a sabedoria das sementes, ergue-se
da tristeza com uma cítara que lhe oferecem
as folhas. O olho árduo e jovem
pertence à vertigem da tarde, torna infinita
a alegria das árvores de fruto. E ama-as. Com 
um amor que Deus não conseguiu dar
a outro pássaro.
Canção pura, fria, e pobre,
é a do melro. A do canto alheio.
Aquele que prolonga os limites da tristeza
e enlouquece as mãos, a pele, a boca dos amantes,
esse que faz enlouquecer o próprio melro
quando vagueia alucinado à procura, no céu,
da inesperada luz
que faz florir as cerejeiras.

 

Joaquim Pessoa

 

A ti, mulher!

Onde estou, espero por ti e amo-te. Olho para ti, e o meu olhar
beija-te. Canto, e é a ti que canto. O destino costuma sorrir-me
com assombro, agora com um recado: aquele que mais ama é sempre mais feliz. Entretanto, sinto que o meu corpo, que tem a idade do mundo, comemora também a alegria da descoberta do fogo. E isso diz-me que, provavelmente, já te amo desde o tem-
po em que as estrelas ainda não repetiam o teu nome.

*

Joaquim Pessoa, in "Ano Comum".

Joaquim Pessoa

Estavas mais bonita do que nunca esta manhã.

E eu nem soube o que dizer-te. Poderia simplesmente dizer
que estavas linda. E diria a verdade. Mas senti que isso soaria
a galanteio, soaria a qualquer outra coisa que não era mais
verdadeira que o meu silêncio. E eu, que vivo das palavras,
não tive palavras que te abraçassem, que corressem mansa-
mente pelos teus ombros, que se aninhassem nos teus cabe-
los, que nas tuas pequeninas orelhas se dependurassem co-
mo brincos.

Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus olhos. Nunca,
como hoje, desejei estar contigo numa ilha. Uma ilha deserta,
mas cheia de nós. E à tua pergunta natural: "o que é que es-
tamos aqui a fazer?", eu responderia também naturalmente:
"se cá estamos, é porque fazemos cá falta!"

Joaquim Pessoa, ANO COMUM

ABRAÇA-ME

Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

 

JOAQUIM PESSOA ,in 'Ano Comum'

Anjo da Guarda

Dia 10.

Volto ao anjo da Guarda: anjo prodigioso das terras altas e frias. pássaro baptismal com a substância múltipla da luz. O iluminar das serras é tarefa árdua porque os brilhos doem como insultos latinos. Pior que isso, e o anjo sabe-o, é ser um artista que devora a própria obra, quando a arte é combustível e o nome é uma espécie de rapaz feminino, alguma coisa que, estando a ser, já não o é. É o que Deus não diz do anjo, o que estabelece em nós, enquanto nervo dos sítios, floração de luz dos mínimos seixos. Já vem o anjo, da Guarda, pelo rosto de cada um de nós, facilitando o que se faz às escondidas, à procura de conferir o que aprendemos. Acendo a luz sobre esta obscuridade. Amo o anjo, e amo-me a mim. Só tu não fazes parte desta história.


Joaquim Pessoa,
(in) Ano Comum
Litexa Editora

Ó Mãe



Ó mãe, regressa a mim. Embala-me no tempo em que os teus lábios rebentavam de ternura. Ó mãe, ó minha mãe, ó rio de água pura, correndo pelas veias. Pelo vento.
Ó mãe, que és mãe de Deus, que és mãe de mim e mãe de Antero e de Camões, e mãe de quem lhe faltam as palavras como se faltasse o ar. E são assim uma espécie de filhos de ninguém. Abre o teu ventre, mãe. Acorda. Vem parir-me. E vem sofrer a minha dor uma vez mais. Morrer de amor por mim. Vem impedir-me o medo. Ensinar-me a amar a luz dos animais.
Ó mãe, ó minha mãe. Ó pátria. Ó minha pena. Que me pariste, assim, temperamental. Mãe de Ulisses, de Guevara e mãe de Helena. E mãe da minha dor universal.

 'Ano Comum'

Poema Vigésimo Nono (inédito) - Joaquim Pessoa



As cotovias mandaram chamar a Palavra
e disseram-lhe: Gostaríamos de voar contigo!
Por quê?, disse a Palavra, se podeis livremente voar
no azul do céu, sobre o mar, e também sobre bosques e searas,
poisar até no cume frio das altíssimas montanhas.
Pois sim, concordou uma delas, mas como faremos
para voar, como tu, até ao coração do homem?
E, a todas, a palavra respondeu: Não, amigas, não sou eu
que voo até ele! É o seu coração que sempre me procura
para oferecer-me a capacidade e a alegria de voar
para lá do azul do céu e para lá da imensidão do mar,
muito para além dos bosques, das searas,
e mais alto, ainda mais alto que o cume frio
das montanhas. Sem nunca chegar ao fim
de nada, mas ao início
de tudo.



Do livro GUARDAR O FOGO, a publicar. 

De esperas construímos o amor intenso e súbito


 

De esperas construímos o amor  intenso e súbito

que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.

Em estranhos desencontros nos amamos.

Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.

Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,

a tarde projectava as suas grandes sombras

enquanto as gaivotas disputavam sobre a água

talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.

As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias

E por muito tempo permaneciam assim, unidas,

Machucando-se, torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.

Depois olhávamo-nos nos olhos

No mais profundo silêncio. E, sem palavras,

Partíamos com as mãos docemente amarradas e os corações estoirando uma alegria breve

Quando a noite descia apaixonada

Como o longo beijo da nossas despedida.

 

Joaquim Pessoa

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo

Estou mais perto de ti porque te amo. 
Os meus beijos nascem já na tua boca. 
Não poderei escrever teu nome com palavras. 
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me. 

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto. 
Quero a tua boca aberta em minha boca. 
E amo-te como se nunca te tivesse amado 
porque tu estás em mim mas ausente de mim. 

Nesta noite sei apenas dos teus gestos 
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos. 
Trago as mãos distantes do teu peito. 

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte. 
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim. 
E eu estou perto de ti porque te amo. 

Joaquim Pessoa,
 Os Olhos de Isa