Os versos mais pobres canta-os o melro na sua desgraça, aqueles que resistiram a um silêncio apedrejado e se tornaram bocados de saudade. É também negra a respiração do melro, dela chega o fraco rumor da noite se o dia se gasta no bico ansioso. O melro aprende de baga em baga. O coração do melro senta-se à mesa da primavera rodeado de canções. E canta com a sabedoria das sementes, ergue-se da tristeza com uma cítara que lhe oferecem as folhas. O olho árduo e jovem pertence à vertigem da tarde, torna infinita a alegria das árvores de fruto. E ama-as. Com um amor que Deus não conseguiu dar a outro pássaro. Canção pura, fria, e pobre, é a do melro. A do canto alheio. Aquele que prolonga os limites da tristeza e enlouquece as mãos, a pele, a boca dos amantes, esse que faz enlouquecer o próprio melro quando vagueia alucinado à procura, no céu, da inesperada luz que faz florir as cerejeiras.
Onde estou, espero por ti e amo-te. Olho para ti, e o meu olhar beija-te. Canto, e é a ti que canto. O destino costuma sorrir-me com assombro, agora com um recado: aquele que mais ama é sempre mais feliz. Entretanto, sinto que o meu corpo, que tem a idade do mundo, comemora também a alegria da descoberta do fogo. E isso diz-me que, provavelmente, já te amo desde o tem- po em que as estrelas ainda não repetiam o teu nome.
E eu nem soube o que dizer-te. Poderia simplesmente dizer que estavas linda. E diria a verdade. Mas senti que isso soaria a galanteio, soaria a qualquer outra coisa que não era mais verdadeira que o meu silêncio. E eu, que vivo das palavras, não tive palavras que te abraçassem, que corressem mansa- mente pelos teus ombros, que se aninhassem nos teus cabe- los, que nas tuas pequeninas orelhas se dependurassem co- mo brincos.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus olhos. Nunca, como hoje, desejei estar contigo numa ilha. Uma ilha deserta, mas cheia de nós. E à tua pergunta natural: "o que é que es- tamos aqui a fazer?", eu responderia também naturalmente: "se cá estamos, é porque fazemos cá falta!"
Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos. Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes. Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais. Uma vez que nem sei se tu existes.
Volto ao anjo da Guarda: anjo prodigioso das terras altas e frias. pássaro baptismal com a substância múltipla da luz. O iluminar das serras é tarefa árdua porque os brilhos doem como insultos latinos. Pior que isso, e o anjo sabe-o, é ser um artista que devora a própria obra, quando a arte é combustível e o nome é uma espécie de rapaz feminino, alguma coisa que, estando a ser, já não o é. É o que Deus não diz do anjo, o que estabelece em nós, enquanto nervo dos sítios, floração de luz dos mínimos seixos. Já vem o anjo, da Guarda, pelo rosto de cada um de nós, facilitando o que se faz às escondidas, à procura de conferir o que aprendemos. Acendo a luz sobre esta obscuridade. Amo o anjo, e amo-me a mim. Só tu não fazes parte desta história.
Ó mãe, regressa a mim. Embala-me no tempo em que os teus lábios rebentavam de ternura. Ó mãe, ó minha mãe, ó rio de água pura, correndo pelas veias. Pelo vento. Ó mãe, que és mãe de Deus, que és mãe de mim e mãe de Antero e de Camões, e mãe de quem lhe faltam as palavras como se faltasse o ar. E são assim uma espécie de filhos de ninguém. Abre o teu ventre, mãe. Acorda. Vem parir-me. E vem sofrer a minha dor uma vez mais. Morrer de amor por mim. Vem impedir-me o medo. Ensinar-me a amar a luz dos animais. Ó mãe, ó minha mãe. Ó pátria. Ó minha pena. Que me pariste, assim, temperamental. Mãe de Ulisses, de Guevara e mãe de Helena. E mãe da minha dor universal.
As cotovias mandaram chamar a Palavra e disseram-lhe: Gostaríamos de voar contigo! Por quê?, disse a Palavra, se podeis livremente voar no azul do céu, sobre o mar, e também sobre bosques e searas, poisar até no cume frio das altíssimas montanhas. Pois sim, concordou uma delas, mas como faremos para voar, como tu, até ao coração do homem? E, a todas, a palavra respondeu: Não, amigas, não sou eu que voo até ele! É o seu coração que sempre me procura para oferecer-me a capacidade e a alegria de voar para lá do azul do céu e para lá da imensidão do mar, muito para além dos bosques, das searas, e mais alto, ainda mais alto que o cume frio das montanhas. Sem nunca chegar ao fim de nada, mas ao início de tudo.
Estou mais perto de ti porque te amo. Os meus beijos nascem já na tua boca. Não poderei escrever teu nome com palavras. Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.
Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto. Quero a tua boca aberta em minha boca. E amo-te como se nunca te tivesse amado porque tu estás em mim mas ausente de mim.
Nesta noite sei apenas dos teus gestos e procuro o teu corpo para além dos meus dedos. Trago as mãos distantes do teu peito.
Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte. Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim. E eu estou perto de ti porque te amo.