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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

MÃE

 

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    Aqui, mergulhado nesta tarde primaveril, afagado pelas suaves brisas vespertinas, recordo a tua vivacidade e as tuas carícias, Mãe.
    Os teus aromas a terra e a hortelã saciavam-nos os sentidos e as tuas mãos calosas, ao passar pelo rosto, eram mais macias que o veludo cálido da tua veste. A tua vivacidade arrastava-nos na voragem dos teus movimentos inquietos e sempre nos levava atrás de ti, seguindo-te as pisadas físicas ou psicológicas. Eras uma estrela vívida e brilhante, que nós sabíamos cadente, mas em que não queríamos pensar, porque te julgávamos eterna e perene – e, apesar de tudo, sê-lo-ás.
    Hoje, a tua memória trai-te a cada passo e a tua vivacidade definha com as forças que os anos te consomem. Somos ainda nós, para ti, não os teus filhos, ou netos – a memória traiu-te mesmo! – mas alguém com quem gostas de estar, de passar alguns momentos – e tantas vezes a vida nos arrasta para longe e impede de estar mais um pouco contigo! Hoje vives fechada em ti, recordas outras vidas, às vezes só tuas, mas continuas a acariciar-nos com as tuas mãos delgadas e ásperas que, contudo, permanecem carinhosas e de veludo, porque são as tuas.
    Mãe, as brisas primaveris continuarão a passar e os aromas estarão connosco!
 
(José Monteiro - 03.05.2009)

 

Perda

 

A tarde alonga-se-me na saudade

De outras curtas tardes de visitas

Alonga-se-me no nada em que ficas

Sozinha para além da realidade

 

Na solidão de uma casa vazia

Onde te reinventa cada recanto

Onde as impressões indeléveis de alegria

Perduram a par de sentido pranto

 

Esses risos essas lágrimas esses gestos

Essas angústias esses beijos essas ternuras

Essas mãos calejadas esse olhar veemente

 

Para sempre estão impressos nesses restos

Que nos deixas e nas ânsias e amarguras

De não te ter mais mas de te ter eternamente.

 

(JM – 14.10.2012)

Nada

Nem sílabas, nem fonemas,

nem palavras, nem grafemas

apenas o vento forte

do norte

me traz o silêncio dos poemas que tu lavras.

 

Tudo se desmorona, enfim,

na solidão da tarde em vendaval

e cai gravemente em mim

uma solene angústia existencial.

 

JM

Colhe o momento / Carpe diem

Amamos em cada dia de maneira diferente,

pois cada dia é desigual do anterior.

 

Assim, como podemos amar sempre o mesmo

se ele muda continuamente?

 

O amor, em si, é versátil :

muda na hora em que vivemos

o presente eterno.

 

Amamos cada dia de maneira diferente

porque o ontem dissipou-se

e o amanhã ainda lá vem subindo devagar

a escada multiforme do tempo.

 

"Colhe o momento" e terás a ventura

de viver cada instante o que ele dura.

 

10.11.2011

 

JM

Terra-mãe

A paisagem deslumbrante dos teus olhos

refletia a luz juvenil da alvorada

e a fecundidade fértil sem abrolhos

rescendendo aos aromas da terra molhada.

 

A seara dos teus cabelos ondulantes

meio madura num junho primaveril

refletia as luzes matutinas coruscantes

e lembrava a pujança de ufano abril.

 

O repouso do teu corpo ternurento

deitado numa realidade refrescante

semiadormecido no amparo do relento

refletia uma serenidade ambulante.

 

No teu ser, tua beleza, tua paixão

corre um rio de águas cristalinas

da terra mãe a insaciável sedução

e todas as manhas e artes femininas.

 

18.06.2013

J M

Beijo

Rasgava o céu azul paulatinamente

a ânsia de mitigar o forte desejo

e no vento que derrapava esconsamente 

ouviu-se nítido o estrondo de um beijo.

 

Tudo parou subita e repentinamente:

o vento, as aves, o rio e até o mar...

Seguiu-se um profundo silêncio; emergente

e cristalino desvendou-se o claro luar!

 

E as memórias desse estrondo povoaram-se

dos lábios húmidos e ridentes desses dois

e os corpos prazenteiros requebraram-se

 

numa dança sofregamente sensual ... pois

no íntimo de cada um sobressaltaram-se

as horas do presente entre um antes e um depois.

 

JM

( )

 

 

Assim.

O silêncio, o vazio, 

a ausência premente.

 

Estás, não estando.

Vês, já não te vemos,

mas sentimos-te em nós.

 

E, nessa voz, 

de lembrança, de saudade,

vivemos a ansiedade 

da tua partida.

 

Hoje celebramos-te,

apesar da distância.

Recordamos-te,

e a verdade de ti

permanecerá em nós.

 

(09.01.1915)

Preciso ...

Preciso de uma mão amiga

estendida na amarga solidão

que me passe os dedos carinhosos

por minha alma em fadiga

sequiosa de afeição

e doutros bens preciosos.

 

Preciso das tuas palavras

envoltas em doçuras sem ironia

com recheio de chocolate

daquelas que tu lavras

na lua cheia do dia

em que o sol nunca bate.

 

Preciso da tua amizade

sem peias nem atilhos

baseada na compreensão,

na entrega, na felicidade,

que os pais outorgam aos filhos

do fundo do coração.

 

JM

Precário

Tudo é tão precário

que a nuvem passageira

ora passando no céu outonal

é todavia mais lenta

que o ser humano em si.

 

Casmurro e otário

sentado no precipício, à beira

da vertigem de ser banal,

o ser humano sustenta

a sensação de ser sem fim.

 

Mesmo vendo o rio correr

sem cessar para o seu fim

não consegue entender

que o destino é sempre assim:

 

Estéril vida sem sentido,

corre-corre continuado,

intervalo de nascer prometido

com a morte sempre a seu lado!

...

A tarde alarga-se vertiginosa

sob as sombras esparsas 

das árvores; amorosa

a noite beijava

a fria nuvem

que descansada

escorregava

pelas horas do entardecer.

 

O beijo era a saudade

de repente

a crescer, a crescer.

 

JM