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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Quando tornar a vir a Primavera

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Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.


Alberto Caeiro 

XIX

 

 

O luar quando bate na relva

Não sei que coisa me lembra...

Lembra-me a voz da criada velha

Contando-me contos de fadas.

E de como Nossa Senhora vestida de mendiga

Andava à noite nas estradas

Socorrendo as crianças maltratadas...

 

Se eu já não posso crer que isso é verdade

Para que bate o luar na relva?

 

Alberto Caeiro, Guardador de rebanhos

Quando eu não te tinha

Quando eu não te tinha

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora amo a Natureza

Como um monge calmo à Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais como vida e próxima.

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens reparo nelas melhor —

Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Porque ainda o sou.

 

“O Pastor Amoroso” Alberto Caeiro

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,


A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,

É o tipo perfeito do erro da filosofia.

 

A guerra, como tudo humano, quer alterar.

Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito

E alterar depressa.

 

Mas a guerra inflige a morte.

E a morte é o desprezo do Universo por nós.

Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.

Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

 

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

 

Tudo é orgulho e inconsciência.

Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.

Para o coração e o comandante dos esquadrões

Regressa aos bocados o universo exterior.

 

A química directa da Natureza

Não deixa lugar vago para o pensamento.

 

A humanidade é uma revolta de escravos.

A humanidade é um governo usurpado pelo povo.

Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

 

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!

Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,

Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

 

 

Alberto Caeiro,Poemas inconjuntos, 24-10-1917

Rimo quando calha

 

Rimo quando calha

E as mais das vezes não rimo...

Copio a Natureza e não a interrogo.

(De que me serviria interrogá-la?)

Nem tudo é terreno plano,

Por isso muitas vezes não rimo...

 

Alberto Caeiro, 7-3-1914

Eu queria

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes

Para não pensar em coisa nenhuma,

Para nem me sentir viver,

Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido.

Alberto Caeiro - 21-5-1917

A noite desce, o calor soçobra um pouco.

A noite desce, o calor soçobra um pouco.

Estou lúcido como se nunca tivesse pensado

E tivesse raiz, ligação directa com a terra

Não esta espécie de ligação do sentido secundário chamado a vista,

A vista por onde me separo das coisas,

E m'aproximo das estrelas e de coisas distantes —

Erro: porque o distante não é o próximo,

E aproximá-lo é enganar-se.

Alberto Caeiro - 1-10-1917

Hoje de manhã saí muito cedo

Hoje de manhã saí muito cedo,

Por ter acordado ainda mais cedo

E não ter nada que quisesse fazer...

 

Não sabia que caminho tomar

Mas o vento soprava forte, varria para um lado,

E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

 

Assim tem sido sempre a minha vida, e

Assim quero que possa ser sempre 

- Vou onde o vento me leva e não me

Sinto pensar.

 

Alberto Caeiro

A noite desce

A noite desce, o calor soçobra um pouco, 
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado 
E tivesse raiz, ligação direta com a terra 
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite. 
À noite quando me separo das cousas, 
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes — 
Erro: porque o distante não é o próximo, 
E aproximá-lo é enganar-me.

 

Alberto Caeiro

Da minha aldeia

 

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... 
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer 
Porque eu sou do tamanho do que vejo 
E não, do tamanho da minha altura... 

Nas cidades a vida é mais pequena 
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. 
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, 
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, 
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, 
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

 

Alberto Caeiro