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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

A Porta de Emergência 2

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“A PORTA DE EMERGÊNCIA”, Américo Rodrigues, Cadernos do CalaFrio

 

Esta peça de teatro é uma exímia observação da realidade e o autor revela-se, como é seu apanágio, perfeito manuseador das palavras e das situações. A peça é dividida em nove partes outros tantos andamentos de uma sinfonia vital, percorrendo os dias vazios de dois idosos institucionalizados num Lar.

É inegável a atualidade do texto pelas temáticas abordadas: numa sociedade envelhecida como a dos nossos dias são-nos apresentados o Luís e o Edgar que tanto podem ser eles como qualquer outro dos idosos que hoje “habitam” em Lares. Quem frequenta essas casas, ao ler o texto, identifica facilmente esses temas e essas pessoas.

São eles dois seres prisioneiros num corpo envelhecido que continuam a procurar uma porta de saída para as suas vidas, mas que se veem obsidiados pela mesma vida e pela sua rotina. Quantos de nós não observámos já cenas um pouco surreais nos Lares? Quantos não ouvimos falar de conflitos ou de histórias de amores entre os habitantes dessas casas eufemisticamente designadas de repouso? Algumas histórias trágicas ultrapassam mesmo as paredes das instituições, com direito a tempo de telejornal ou notícia de jornal. Porque afinal o ser humano mantém as suas faculdades até ao fim. Até ao fim? Umas sim, outras não. A de amar talvez sim nem que seja um amor a si mesmo, individualista e egocêntrico: acaso de velhos, como diz o povo, não voltamos a meninos?

A surrealidade está nitidamente presente nos diálogos que travam esses dois seres tentando enganar a crescente solidão que os envolve e, por isso, tentam encontrar uma porta que lhes dê, ou ao menos acene, com uma réstia de liberdade. Que os faça sentir vivos e independentes. E aqui, nestes diálogos, está então a arte exímia do autor: lemos e sentimos que já presenciámos cenas semelhantes, conversas aparentemente fúteis, mas que revelam no fundo esse medo de existir em solidão. E aí interrogamo-nos quem são afinal os verdadeiros actores: aqueles que representam no palco ou aqueles que vivem o dia-a-dia representando um papel que lhes foi dado, consciente ou inconscientemente pela vida?

A par do envelhecimento surge sempre o medo da solidão. E esta ameaça percorre as páginas do texto. Desde o início vemos uma aliança tácita entre os dois dialogantes: amparar-se mutuamente. Conheceram-se apenas no Lar, aproximaram-se por motivos aparentemente fúteis, mas ligaram-se por laços afetivos. Nem um nem o outro se tinham realizado amorosamente em pleno. Não tinham podido exprimir livremente as suas tendências sexuais. A sociedade preconceituosa não o tinha permitido e eles não tiveram coragem para assumir essa faceta. Um tinha estado casado mas nunca dormiu com a mulher; o outro tinha tido vários amores passageiros sem nunca se fixar. No segundo momento da peça ficamos a saber do início da relação entre os dois num dia em que Edgar se rebelou contra as papas de milho (p.10) partiu a loiça e exaltado recitou um poema de Herberto Hélder. Fez-se luz no coração de Luís. Dias depois aconteceu aquele momento “sobrenatural” em que se encontram na capela, com Edgar a tocar órgão – um zimmermann - com uma espécie de auréola na cabeça (p.11). Aparição deslumbrante. Entendem-se e surge a luta demorada e ingente contra as normas e os preconceitos do Lar quando solicitaram a junção dos dois no mesmo quarto (12). Mas, com a sua teimosia, conseguiram vencer os preconceitos e passaram a viver juntos. Episódio fulcral no texto, criado com ironia e intencionalidade dramática a vis dramática dos latinos: nesse ato de rebeldia Edgar recita, como já se disse, o poema de Herberto Hélder “aquele que fala da bilha de gás!” (11) Esta intertextualidade com a poesia juntamente com a implícita música sacra do órgão, criam, na minha opinião, um dos momentos mais expressivos do texto.

Não se pense, no entanto, que a partir daí viveram numa harmonia celestial. Não. A monotonia da vida do Lar é quebrada pelo conflito interior. Em cada página vemos o conflito contínuo, aliado, como já referi atrás, ao medo da solidão. É o carinho que o funcionário do Lar, ainda jovem e atraente, dedica ao outro que faz nascer o ciúme; é a ânsia de um em chegar primeiro ao refeitório a ponto de querer ir para lá com meia hora de antecedência contrariamente ao outro que prefere ficar à espera longe da porta; são as breves discussões sobre as papas de milho ou qualquer outro prato servido às refeições; é o cumprimento ou o esquecimento na tomada dos comprimidos porque devia ter tomado o preto e não o cinzento; a ida ou não ao passeio do Lar, (12)… Tudo isto são pretextos de renovar o sentimento que os une. E não faltam as recriminações de esconderem um ao outro aspetos da vida anterior como qualquer casal. Mas tudo isso conflui para que a união se fortaleça e vemo-los na parte final a jurarem amparo recíproco até ao fim. E a nomearem cada um ao outro como herdeiros daquilo que consideram mais íntimo: os “diários” escritos na vida anterior ou as bobines antigas que contêm uma confissão gravada aos dezoito anos ou por aí.

E é na discussão que surge à volta da ida ou não ao passeio anual do Lar – Luís quer ir, Edgar não – que nasce uma hipótese absurda (ou talvez não): ficarem no Lar e fugirem. Mas como se os muros têm 3 metros de altura? Fantasiam então sobre essa aventura que viria na primeira página dos jornais do dia seguinte: dois velhos saltam o muro de 3 metros. (Sanchez) Há ainda outra hipótese: a porta de emergência que está sempre aberta e que dá para o jardim. No entanto, a hipótese é irreal porque o jardim tem um portão que só abre com telecomando. E este só está na posse de algumas pessoas. De repente, o absurdo desaparece pois Luís roubou o comando ao Padre após a missa de domingo. Têm assim a possibilidade de fuga. Porém não a concretizam. Porquê?

Fica a pairar no ar a dúvida que se desfaz na parte final do texto: a porta de emergência que os fará sair dali só pode ser uma: a morte. Tudo o resto é absurdo. E o simbolismo do título concretiza-se: a porta, a única saída das suas vidas está cada vez mais iminente. As forças vão faltando, os comprimidos são trocados, a vontade de sair vai diminuindo, a abulia apodera-se paulatinamente deles. Por momentos ainda paira no ar outra possibilidade, outra porta formalizada por Luís: a morte provocada – suicídio ou homicídio. (Dolores / Deolinda) (21/22) Mas vemos que nem para isso há forças ou determinação.

E aproximamo-nos assim do fim: deles que também pode ser nosso. Prisioneiro das emergências, o ser humano chega ao fim e após a morte de Luís, Edgar recolhe o corpo nos braços protelando o anúncio da sua morte. Quer reter o seu corpo o mais tempo que puder formulando várias hipóteses na retoma da fantasia já formulada: fugir. Fantasia e declaração amorosa: o amor pede-lhe que fique, que se agarre à materialidade de um corpo velho e inerte para assim poder usufruir eternamente da sua presença. Ficamos suspensos e a pensar se aqueles dois, Luís e Edgar, não seremos nós um dia. Se tudo o que nos foi apresentado ao longo do texto não será uma fantasia do autor. Ou então se este é, afinal, aquele observador exímio capaz de transformar em texto aquilo que é a vida. O que me faz relembrar a frase de Charles Bukowski: “Observava as pessoas à distância, como numa peça de teatro. Apenas eles estavam no palco e eu era plateia de um homem só.”

Ou no caso deste texto de dois.

 

17.12.2016

[Texto de apresentação da peça de Teatro do guardense que continua a lutar pela Cultura na nossa cidade. Como ele disse na sessão é uma peça para ser lida, por isso leiam-na que é de uma grande actualidade. Obrigado Américo!]

 

Alepo



Em Alepo está o nosso sangue

derramado por armas criminosas

e a humanidade ficará exangue

destruída por bombas tenebrosas.

 

Em Alepo predomina a fome

a miséria, o ermo, a desolação

pois o interesse da ganância consome

o ser humano sem compaixão.

 

Alepo, bairro do nosso mundo,

cidade do nosso adotado país

és o retrato negro e imundo

 

dos homens senhores do seu nariz

dominados por horrível e profundo

ódio, dono deste tempo infeliz!

 

J M


Poemas de Ironia e Má-Língua - Cristino Cortes

 

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Editora: Calçada das Letras, Prefácio: Annabela Rita, Capa: Henrique Ribeiro

 

     "Poeta de escrita consolidada, Cristino Cortes presenteia-nos desta vez com a sua verve de sagaz observador do quotidiano poético, à Cesário. E, como Cesário, deixa a ironia soltar-se e revelar o que aos olhos de um leigo literário seria o banalíssimo dia a dia, mas que o seu olhar poético converte em temas de poesia. Este é um livro que entronca nos poemas satíricos medievais sejam de escárnio, sejam de maldizer. Que se revê nas “cousas de folgar e gentilezas” do Cancioneiro Geral. E, por aí fora, até aos nossos dias na corrente satírica da lírica portuguesa. E ali, ao dealbar do século XX, vamos parar inevitavelmente devido ao título provocatório do livro entroncado sem dúvida na provocação literário-dramática de Almada Negreiros e do seu Manifesto, PIM!

     O livro divide-se em três partes a que o autor chamou “Observações”, “Imaginações” e “Teorias e Homenagens”. Na primeira parte assistimos ao desfile de factos diários, como diz o título, observações em circunstâncias diversas desde o estado do tempo a abrir, à viagem de metro/autocarro, ao almoço, à espera no consultório, enfim, qualquer hora do dia serve ao poeta para ironizar observando o real quotidiano. Tudo é motivo poético; tudo é razão para o poeta organizar umas palavras e dar-nos belos quadros e alguns bem expressivos. Exemplifiquemos: o filme de sábado na TV atrasado que permite uma boa sesta, a viagem matinal no autocarro, a aparição surpresa da Musa (poema longo onde o sujeito poético se espraia desde o início da observação – atração formal à primeira vista – até à separação). As formas sedutoras da sereia prendem o olhar e faz-nos acompanhar a proposta de visita: as formas corpóreas, o vestuário, os trejeitos tudo que a torna uma deusa. E assim se fez o poema. Ou vai fazendo: “É o que faço, estou a fazer, em boa verdade já fiz.” (p. 17) Parece que o espanto foi tal que deixou o sujeito poético meio grogue. Até porque “O poema não tem qualquer exigência / - se é que ficou feito … como ela o merece e eu o quis.” (p.17) Enfim, depois da contemplação daquelas costas nuas, vem o desejo do poeta – mais arriscado que o de Cesário no “Deus lhe dê saúde” da regateira do “Bairro Moderno” – e mais altruísta: “Que os deuses a protejam, sortudo será o homem que a amar”.(p.17) Apontamentos de um novo amor relembrando a Bárbara Cativa camoniana.

     É pois este o tom desta primeira parte do livro. Há ainda o “Atestado … de não idade” onde o poeta brinca com as possibilidades de redação de um atestado médico não ao gosto do doente mas do doutor que diagnostica a pior de todas as doenças que alguém quer ouvir: velhice! “O que andou já não tem mais para andar”, (p. 23) (diz o poeta através da sabedoria popular. São aliás os dit(ad)os populares que servem muitas vezes para confirmar a ironia literária que o autor vai destilando ao cair dos versos: “Passou já o meio do mês e ainda não abri falência. / Isto é caso raro, algum burro irá cair da ponte. / Não deitemos foguetes antes da festa, …” (P.25) E, quase a terminar esta primeira parte, a salvação poética do autor através da observação da mesa vizinha no restaurante: alguém ria a bandeiras despregadas qual cascata de som em si próprio sem querer enrolado …”(p. 28) Era o riso cantante e alegre de uma rapariga cujo parceiro de mesa não apreciava da mesma maneira. No entanto o sujeito poético, depois de eles saírem e numa segunda composição, fica a divagar e a cogitar se aquele sorriso, riso ou o que quer que seja, corresponderia a outras performances da rapariga noutros domínios menos confessáveis.  E aí o maldizer entra no domínio do escárnio sexual afirmando “se em amar / Ela assim fosse, em vez de um precisaria de dois!” (p.29) o que faz lembrar aquelas eróticas cantigas medievais. O que seguiu só foi dado ao poeta adivinhar, mas lá que o dia ficou salvo, ficou: “Salvou-me visivelmente o dia e eu muito lho agradeço.”(29) E, a completar, o poema Aparências feito de insinuações cujo incipit aponta a direção para onde o sujeito poético nos quer encaminhar: “Nem sempre mostram as mulheres a vontade que lhes mora / por baixo da roupa. (33). Bem, o resto o leitor imagine ou então … leia, ou se quiser seguir o conselho do magno poeta “mais vale experimentá-lo que julgá-lo.” Experientes conselhos dos dois poetas.

     Após as oportunas observações veem as imaginações. Estas servem ao poeta para vencer o tédio das reuniões e vemo-lo a imaginar qual será a mulher mais bela por ali. E qual Páris, di-lo explicitamente, começa a escolha. Mas esta é difícil pois aquilo que agrada numa desagrada noutra, levando-o a desejar ser Fausto para ele próprio poder formar o corpo perfeito. A verdade é que assim as reuniões não são uma seca e quem fica a ganhar é a poesia. Recupera dos mortos a sua Eurídice por virtude do muito imaginar. E ainda observador (será que este poema não é uma observação e assim deveria estar na primeira parte?) segue atrás dela num deambulismo cesárico e vai-a construindo na sua imaginação. Ela é quase um sonho impalpável tão vaporosa aparece aos olhos do poeta. E é exatamente essa visão etérea que o acompanha e lhe faz soltar o desejo com que termina o poema: “… se a forma encontrasse / de como ela, também eu do íman do chão me libertasse!” (p. 45). E a viagem continua por uma série mais de poemas sempre no tom jocoso à boa maneira escarninha portuguesa dizendo sem dizer, mas deixando sempre entrever o que o leitor quiser imaginar. A ironia utilizada nalguns destes poemas lembra-nos também o Canto da Cigarra do nosso Augusto Gil especialmente naquele “Instante de autoironia” ou mesmo os epigramas do nosso poeta naquele “Estender de roupa”.

     Mais haveria a dizer, mas terminemos com as teorias e homenagens. O caminho percorrido até aqui mantém-se na mesma linha de humor e ironia breve. A novidade, se acaso existe, baseia--se na explicitação dos mentores desta linha temática para o poeta. Destaca-se o poema A outra versão de Penélope onde o poeta divaga sobre a razão da sua fidelidade a Ulisses – “Fui-te fiel, sim /Oh Ulisses bem amado! / Mas pouco mérito há nessa minha constância/ Foi a majestade de rainha que me salvou/ E o respeito pela tua posição / Dos homens que me rondavam as saias”. (p. 63) Depois voltamos aos médicos e aos consultórios e quase lá nos encontramos com Bocage; passamos pela autoidentificação irónica; finalmente chegamos aos poetas e simbolicamente encontramos a vingança de Florbela pela filoginia do poeta (será?) e terminamos o percurso com o Fernando Pessoa a deambular pelas ruas de Lisboa perseguido pelas suas sombras. Teria sido assim desde o nascimento? Com toda a probabilidade.

     É deste modo o percurso irónico e satírico do autor pela realidade diária que o cerca mais ou menos automaticamente sim, mas sempre com um espírito de observação poderoso. Percurso feito na sua maioria em sonetos shakespearianos composição tão ao gosto do poeta."

 

José Manuel Monteiro

 

Recensão publicada na última "Praça Velha" (nº 34)

A Porta de Emergência

Edgar - A minha família não tinha esse hábito de ir nadar nos rios gelados. Nunca gostei de água fria.

Luís – Nós, sim. Eu e os meus irmãos sonhávamos com as idas ao rio. Íamos no velho carro do meu pai por caminhos estreitos e cheios de pó. Parávamos junto a um amieiro e continuávamos a pé. As urtigas e as silvas picavam-nos, de forma diferente. E lá íamos até encontrarmos uma pequena lagoa de água limpa e fria para nadar. Havia também umas pedras grandes onde nos deitávamos ao sol. E, claro, árvores e erva.

Edgar - Não me convences. Não gosto de rios. Tão pouco de praias.

Luís - Isso é lá contigo…

Edgar - Ir em excursão, Cinquenta velhos uns atrás dos outros e se calhar de mãos dadas?! Mais as cadeiras de rodas e “andarilhos”. Que ridículo!

 

Américo Rodrigues, A Porta de Emergência

Amanhã na BMEL

Lançamento dos dois primeiros números dos Cadernos do CalaFrio:
- "A porta de emergência" de Américo Rodrigues
- " Historietas de Martim Afonso" de Rogério C. Pires

 

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