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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ecos da sessão de 21.03, Dia Mundial da Poesia.

 

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A ler:

 

Inopinadamente
a tarde deixou-se dominar
pelos gatos selvagens;
inadvertidamente
a andorinha poisou
no resto do fio telefónico
que corta os ares dos subúrbios
da cidade descansada;

 

quando o gato saltou
apanhou apenas a cidade
pois a andorinha exímia
acordara a tempo
avisada pela chamada do destino
na inopinada linha telefónica.

 

J M

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Dia 21 de Março: Dia Mundial da Poesia

 


A Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço comemora o "Dia Mundial da Poesia", dia 21 de março, às 21h30, com um encontro de poetas da cidade.
Trata-se de um momento de leitura de poemas pelos autores e de uma conversa, conduzida por Joaquim Igreja, sobre a poesia e a criação literária.
O encontro está marcado para as 21h30 do dia 21 de março, e contará com a participação dos poetas Daniel Rocha, José Monteiro, Américo Rodrigues, António Godinho, Susana Celina, João Rebocho, João Mendes Rosa, António Sá Rodrigues, Susana Campos, Alexandre Gonçalves, Ana Monteiro e Maria Afonso, entre outros.
Associe-se a esta comemoração!

NÃO SEI COMO DIZER-TE QUE A MINHA VOZ TE PROCURA

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima,
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes caem no meio do tempo,
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

 

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

 

que te procuram.

 

HERBERTO HELDER.

...

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

 

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

 

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

 

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

 

 

Natália Correia, in “Poesia Completa”

Demissão

 

Se pudesse escrevia um poema sem palavras.
As palavras não existem. Já nada dizem
Do que antes era. Antes
Quando o medo era sombra inexistente
E era possível aos homens falar de amor.
Agora há só o espantalho do medo,
As bocas negras, a fome negra,
E o uivo dos cães mudos nas noites desertas e distantes.
Antes havia feras e cristão para as feras.
Agora, ou porque tudo são feras,
Ou porque já não há cristãos
(E há só o medo, o pavor, a fome,
As cumplicidades carnais ao topo dos ventos,
E o ridículo de se ter medo: o pasto das trevas)
A semente de Deus anda à deriva sem leira onde se acoite.

- Espuma, sonho, aurora, canto? - palavras ausentes.
No galeão da vida, haverá de novo bodas de sangue
Para que do Mar volte para a Terra
O viço e a alegria das novas sementes.


Vasco Miranda, A Vida Suspensa

Mulher



Pega numa braçada de flores e leva-as contigo

e quando chegares ao pé dela

se tiveres vontade de a desdizer

desfolha uma a uma as belas rosas:

bem te quero, bem te quero, bem te quero ...

 

Abre depois um largo sorriso amigo

e mostra-lhe ser a única, ela,

capaz de sempre te compreender;

oferta-lhe palavras amorosas:

bem te quero, bem te quero, mais te quero ...

 

E lembra-te que é tua irmã

tua amada, tua princesa;

amima-a cada bela manhã

e mantém a chama acesa

da verdade, do amor e do bem:

nunca esquecendo sua missão: Mãe!

 

J M


Poema Melancólico a não sei que Mulher

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga, Diário

Joaquim Pessoa

Estavas mais bonita do que nunca esta manhã.

E eu nem soube o que dizer-te. Poderia simplesmente dizer
que estavas linda. E diria a verdade. Mas senti que isso soaria
a galanteio, soaria a qualquer outra coisa que não era mais
verdadeira que o meu silêncio. E eu, que vivo das palavras,
não tive palavras que te abraçassem, que corressem mansa-
mente pelos teus ombros, que se aninhassem nos teus cabe-
los, que nas tuas pequeninas orelhas se dependurassem co-
mo brincos.

Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus olhos. Nunca,
como hoje, desejei estar contigo numa ilha. Uma ilha deserta,
mas cheia de nós. E à tua pergunta natural: "o que é que es-
tamos aqui a fazer?", eu responderia também naturalmente:
"se cá estamos, é porque fazemos cá falta!"

Joaquim Pessoa, ANO COMUM

Velhas Árvores

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

 

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

 

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

 

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

 

Olavo Bilac, in "Poesias"