Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

E houve ...

E houve um teu sorriso

na meiguice do vento sul

disperso, leve e impreciso

que tornou o cinzento em azul

 

E em seguida a gargalhada

irrompeu impetuosa e necessária

flor de desperta madrugada

fantástica, muda, extraordinária

 

E houve o teu corpo ainda

impulsivo, agitado e sedutor

rodopiando naquela dança linda

 

Depois ... bem, depois o sorriso, o amor

realizou-se naquela tarde infinda

numa gargalhada do corpo, indolor!

 

 

25.10.2013 J. M.

A aranha do meu destino

A aranha do meu destino

Faz teias de eu não pensar.

Não soube o que era em menino,

Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada

Apanhou-me o querer ir...

Sou uma vida baloiçada

Na consciência de existir

A aranha da minha sorte

Faz teia de muro a muro...

Sou presa do meu suporte.



Fernando Pessoa, 10-8-1932

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

 

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

        Substitui o calor.

P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.

        Este luzir é melhor.

 

O que é a vida? O espaço é alguém para mim.

        Sonhando sou eu só.

A luzir, em quem não tem fim

        E, sem querer, tem dó.

 

Extensa, leve, inútil passageira,

        Ao roçar por mim traz

Uma ilusão de sonho, em cuja esteira

        A minha vida jaz.

 

Barco indelével pelo espaço da alma,

        Luz da candeia além

Da eterna ausência da ansiada calma,

        Final do inútil bem.

 

Que se quer, e, se veio, se desconhece

        Que, se for, seria

O tédio de o haver... E a chuva cresce

        Na noite agora fria.

 

 

Fernando Pessoa, 18-9-1920

Um ano!

Se pudesse voltar atrás

Ao tempo em que me tinhas ao colo...

Um tempo de paz, harmonia, felicidade,

De encanto com teu canto,

Antes de seres apenas saudade.

Dizer-te o quanto ficou por dizer

Enfim ... sofrer é sempre morrer!

 

(Eterna e perene lembrança de TI!)

 

JM

Preguiça

Ando há dias com a sensação

de ver a realidade desfocada.

Algo me turva a visão ,

desfeia a nitidez do olhar

e perverte a luz derramada.

 

Há pouco, pensando com mais clareza,

notei que afinal era pó, tudo baço,

nas lentes dos óculos bifocais.

Limpá-las era fácil! Mas haverá beleza

na realidade tão cruel? Não será demais

o esforço?  Limpá-las? Não o faço!

 

07.10.2013

J. M.

Para um Amigo Tenho Sempre

Para um amigo tenho sempre um relógio 
esquecido em qualquer fundo de algibeira. 
Mas esse relógio não marca o tempo inútil. 
São restos de tabaco e de ternura rápida. 
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. 
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol. 



António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa"

Chove?... Nenhuma chuva cai...

 

Chove?... Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro em mim.
Se escuto, alguém dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim ...

Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil que o meu pranto?

 

 

1-12-1914

Fernando Pessoa