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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Lírica camoniana

Tanto de meu estado me acho incerto,

Que em vivo ardor tremendo estou de frio;

Sem causa, juntamente choro e rio,

O mundo todo abarco, e nada aperto.

 

É tudo quanto sinto um desconcerto:

Da alma um fogo me sai, da vista um rio;

Agora espero, agora desconfio;

Agora desvario, agora acerto.

 

Estando em terra, chego ao céu voando;

Num' hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar um' hora.

 

Se me pergunta alguém porque assim ando,

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.


**********


Pede o desejo, Dama, que vos veja:

Não entende o que pede; está enganado.

É este amor tão fino e tão delgado,

Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só por que  nunca falte onde sobeja.

Mas este puro afeto em mim se dana:
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,

Assim meu pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.



Luís de Camões

No entardecer da terra

No entardecer da terra
O sopro do longo Outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
O vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

Fernando Pessoa, in Cancioneiro

AMIEL

Não, nem no sonho a perfeição sonhada 
Existe, pois que é sonho.  Ó Natureza, 
Tão monotonamente renovada, 
Que cura dás a esta tristeza? 
O esquecimento temporário, a estrada 
Por engano tomada, 
O meditar na ponte na incerteza...

 

Inúteis dias que consumo lentos 
No esforço de pensar na ação, 
Sozinho com meus frios pensamentos 
Nem com uma 'sperança mão em mão.

 

É talvez nobre ao coração 
Este vazio ser que anseia o mundo, 
Este prolixo ser que anseia em vão, 
Exânime e profundo

 

Tanta grandeza que em si mesma é morta! 
Tanta nobreza inútil de ânsia e dor! 
Nem se ergue a mão para a fechada porta, 
Nem o submisso olhar para o amor.

 

Fernando Pessoa