Foi apresentado hoje na Guarda este livro da editora Âncora e da autoria de Jorge Carvalheira natural do distrito. A apresentação esteve a cargo da palavra sempre sábia e escrupulosamente perfeita de António José Dias de Almeida. Promete boas leituras e uma viagem magnífica desde a serra da Lapa até à fronteira de riba-côa. Recomenda-se.
A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela. São tolerantes com ela. O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes, Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho, Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis? Do meu jardim exíguo os altos girassóis Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!) A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho? E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho? - Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Nem te ergas mais da cova. Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova... Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais, Alma da minha mãe... Não andes mais à neve, De noite a mendigar às portas dos casais.
Não era a minha alma que queria ter. Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma altura nova. Decidida capaz de tudo ousar. Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada de trazer por casa. A alma que eu queria e devia ter… Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova, nova, nova!