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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

O Poema


O poema me levará no tempo 
Quando eu já não for eu 
E passarei sozinha 
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá 
Às searas 

Sua passagem se confundirá 
Com o rumor do mar com o passar do vento 

O poema habitará 
O espaço mais concreto e mais atento
 
No ar claro nas tardes transparentes
 Suas sílabas redondas 

(Ó antigas ó longas 
Eternas tardes lisas) 

Mesmo que eu morra o poema encontrará 
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas 
De funda e devorada solidão 
Alguém seu próprio ser confundirá 
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto

Manuel Poppe (2)

A Guarda é a minha Pátria!

Manuel Poppe fez-se homem na Guarda. No “Rocha”, mas também no “Poço do Gado”. Na Biblioteca do Padre Pôpo, mas também na papelaria do Senhor Casimiro. Tem da Guarda a memória dos afectos.
Muitas vezes provocatório e quase sempre irreverente q.b. Manuel Poppe é um intelectual distinto. Não alinha no politicamente correcto, nem no silêncio das conveniências. É cidadão de corpo inteiro, amigo do desassombro. Diz o que pensa, o que é raro neste país de capelinhas e de figurões bem-falantes. Anarquista tranquilo, Manuel Poppe é, para além de um excelente prosador, um homem íntegro, um homem livre.

Fez crítica literária no “Diário Popular”e produziu e apresentou um programa sobre livros na televisão. Foi conselheiro cultural junto da Embaixadas de Portugal em Roma, São Tomé, Telavive e Rabat. É “Dottore in Lingue e Leterrature Straniere, pela Universidade “La Sapienza”, com uma tese sobre Régio. Sandro Pertini distinguiu-o com a comenda da Ordem de Mérito e as cidades de Florença e Veneza com as respectivas Medalhas de Ouro.

 

[Início de uma entrevista feita por Américo Rodrigues e publicada na revista "Praça Velha"; o resto pode ser lido aqui.]

 

Os olhos do poeta

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada 
													à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, Poemas completos

LIBERTAÇÃO

Menino doido, olhei em volta, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura...)

Como passar o tempo?... E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...

Ah, meu menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado...
E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

José Régio

Mar Morto - Alberto de Serpa

A noite caiu sobre o cais, sobre o mar, sobre mim...

As ondas fracas, contra o molhe, são vozes calmas de afogados.

O luar marca uma estrada clara e macia nas águas,

mas os barcos que saem podem procurar mais noite,

e com as suas luzes vão pôr mais estrelas além ...

O vento foi para outros cais levar o medo,

e as mulheres, que vêm dizer adeus e cantar,

hoje sabem canções com mais esperança,

canções mais fortes que a ressaca,

canções sem pausas onde passe uma sombra da morte...

Velhos marítimos — a terra é já a sua terra —

olham o mar mais distante e têm maior saudade...

Pára o rumor duns remos...

Não vão mais às estrelas as canções com noite, amor e morte...

em todos os que ficam e andam no mar também ...

E a luz do farol, lá longe, diz talvez...

 

(Pregão, 1952)

Pára-me de repente o pensamento


Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, se demora.
E mergulha na noite escura e fria.

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...

Ângelo de Lima

 

Relendo V. Ferreira (2)

“Mas eis que surge inexorável outro espaço de memória marcado a vento, a solidão e a saudade. Sentada no cimo da montanha, essa cidade Velha, de lentos fantasmas ferrugentos, há-de elevar-se para sempre perto da estrela polar. Reconstitui-se-me partícula a partícula na vertigem de uma adolescência rebelde, prenhe da brancura fria de uma neve frequente e fértil. Cidade branca e corroída dos séculos, abrigando-se à sombra pesada da velha Sé. Ruas apertadas nos muros obsidiantes do burgo medieval, canais estreitos de ventos gélidos estratificados na rama espessa das árvores da mata. Cidade que termina abruptamente, caindo no abismo das ladeiras íngremes subindo afogueadas para o infinito das gárgulas obscenas que o sagrado templo mostra irónico aos turistas acidentais. Cidade circular onde, na angústia das ruas, se espelha o labirinto do Ser que ciclicamente regressa sempre ao ponto de partida. Cidade mudada em Penalva, aninhada no cume da montanha e refractária a novas ideias."

 

JM

Relendo V. Ferreira

“Sentado aqui nesta sala, relembro. Uma luz ténue de Janeiro entra sorrateira e ilumina-me. Traz-me à memória das origens e uma necessidade de vísceras percorre-me a mente. A luz coada das janelas arremete-me de frente e de súbito representa-me a aparição. Aos poucos, os espaços da vivência enchem-me a memória da alma.

Abro caminho ao longo desta memória e vou ao encontro de recordações dispersas. Esfumo numa névoa de olvido os espaços da revelação e eis que subitamente se me ergue, como num sonho desvelado, o sagrado espaço da montanha. Aparição fantástica na memória das origens, eleva-se-me na mente e reabre à luz duma forte Lua de Janeiro a identidade original da aldeia serrana. A Lua e a montanha desdobram-se em elementos singulares e irrepetíveis no decorrer de uma existência inquieta e inquisidora. Sobranceira à aldeia, sombreando-a e iluminando as pregas da mente imiscui-se sorrateira no íntimo de cada um e cresce enorme até à angústia existencial. Reaviva-se-me no pensamento uma passagem de infância pela Cova da Beira, rodeada pela imponência da Gardunha, vigilante e sentinela da ordem, do outro a imensidão da Estrela, altiva, soberba e independente.”

 

JM