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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

FERNANDO PESSOA - 75 anos da morte

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,

Não há nada mais simples.

Tem só duas datas—a da minha nascença e a da minha morte.

Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

 

Sou fácil de definir.

Vi como um danado.

Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.

Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.

Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.

Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;

Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.

Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

 

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.

Fechei os olhos e dormi.

Além disso, fui o único poeta da Natureza.

 

Alberto Caeiro 8-11-1915

POR AÍ

Se me quiserem encontrar

ando perdido por aí

muito afastado de mim;

vagueio na rua do tempo

cruzo a esquina da saudade

e deambulo pela cidade

da lua.

 

Apanho os raios do sol

como quem bebe copos de areia

e não me sai da ideia

que tenho de agarrar

os pedaços de lua cheia

perdidos na fímbria do mar

que é tua.

 

Encontro em cada beco

mais um indício da morte

e vou jogando com a sorte

(feito mero badameco)

os minutos preciosos

desta vida.

 

Assim duro e me arrasto

neste caminho lento e triste.

E, se por acaso me viste,

não era eu, mas um lastro

do que fui outrora

completamente diferente

do que possa ser agora.

Nunca fui inteligente

nesta vida!

 

JM

 

"Nom me posso pagar ..."

   Non me posso pagar tanto    
   do canto
   das aves nen de seu son,
   nen d'amor nen de ambiçom  
   nen d'armas - ca ei espanto, 
   por quanto
   mui perigo[o]sas son, 
   - come dun bon galeon,
   que mi alongue muit' aginha
   deste demo da campinha,   

   u os alacraes son;
   ca dentro no coracon
   senti deles a espinha!


   E juro par Deus lo santo
   que manto 
   non tragerei nen granhon,
   nen terrei d'amor razon
   nen d'armas, por que quebranto
   e chanto
   ven delas toda sazon;  
   mais tragerei un dormon,
   e irei pela marinha
   vendend' azeit' e farinha;
   e fugirei do pocon
   do alacran, ca eu non  
   lhi sei outra meezinha.

   Nen de lançar a tavolado
   pagado
   non soo, se Deus m'ampar
   aqui, nen de bafordar; 
   e andar de noute armado,
   sen grado
   o faço, e a roldar;
   ca mais me pago do mar
   que de seer cavaleiro; 
   ca eu foi ja marinheiro
   e quero-m' oimais guardar
   do alacran, e tornar
   ao que me foi primeiro.

   direi-vos un recado:   
   pecado
   nunca me pod' enganar
   que me faça ja falar
   en armas, ca non m'e dado
   (doado 
   m'e de as eu razoar,
   pois-las non ei a provar);
   ante quer' andar sinlheiro
   e ir como mercadeiro
   algua terra buscar, 
   u me non possan culpar
   alacran negro nem veiro.

 

D. Afonso X, rei de Castela e Leon

 

Aqui deixo a "tradução" da Dr.a Elsa Gonçalves:

 

I. Não posso agradar-me tanto do canto das aves, nem da sua melodia, nem do amor, nem da ambição, nem das armas — pois me causam pavor, porquanto são muito perigosas — como me agrado de um bom galeão que me leve muito depressa para bem longe deste demónio de campina onde há lacraus, pois dentro do coração senti a sua ferroada.

 

II. E juro por Deus santo que não levarei manto, nem barba, nem me ocuparei do amor, nem das armas — pois delas vem sempre quebranto e pranto — mas levarei um bergantim e irei pela beira-mar, vendendo azeite e farinha, e fugirei do veneno do lacrau, pois não conheço outro remédio contra ele.

 

III. Nem me agrada o jogo do tavolado, assim Deus me ajude, nem do bafordo, e se ando de noite armado ou a rondar, faço-o sem prazer; mais me agrada o mar do que ser cavaleiro e daqui em diante quero livrar-me do lacrau e voltar a ser o que fui.

 

IV. E mais vos direi: o demónio já não pode induzir-me em  engano, que me faça falar em armas, pois não me diz respeito (é inútil que eu fale delas, pois não voltarei a usá-las.); antes quero andar solitário e ir como mercador procurar alguma terra onde não me possa picar lacrau negro nem de várias cores.

 

[ Elsa Gonçalves, Maria Ana Ramos, A lírica galego-portuguesa, Editora Comunicação]

 

 

ouTorga

SANTO E SENHA

 

Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

  

Miguel Torga

[Há pouco no TMG o grupo OUTORGA cantou este e outros poemas de Miguel Torga. Foi um bom espectáculo em que a música e a poesia estiveram de mãos dadas e em excelente harmonia. Também de referir que o compositor das músicas é guardense: João Mascarenhas. O poema "Relato" pode ser ouvido aqui.]

Uma Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.

Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

 

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

 

                                                                                 António Ramos Rosa

Amizade!!!

Em dias de ventania e chuva, como hoje, às vezes a vida prega-nos partidas saborosas e doces: devolve-nos muitos amigos que partiram e deixámos de ver. É certo que outros ficam na distância ou não têm possibilidade de aparecer, mas também eles continuam connosco, porque a amizade perdura. Na presença ou na distância, implicita ou explicitamente, a amizade é sempre algo gratificante que nos faz sentir felizes por termos nascido - obrigado mãe! - e nos leva a entoar hinos à vida.

Tarde

(http://wwwcantinhoazul.blogspot.com/2008_10_01_archive.html

 

A tarde riu-se do calendário

que dizia novembro em letras gordas,

mas ela gargalhou gaiata

e voltou a mostrar os braços das raparigas.

 

O horizonte escrevia fumo

nas breves nuvens passageiras de outono

e as aves gorjeavam atónitas no poente

azul da serra, colorida de verde esperança.

 

O pintor porém não mente

e nas ruas macadamizadas de folhas velhas

o tom é amareladamente outonal

embora também o vermelho surja

prenunciador do sangue de dezembro.

 

JM

(05.11.2010)

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