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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Pai

31 de Maio

 

Dia de sentir saudades, porque dia de perda!

Há anos partiste, pai!

Mas as saudades continuam entre nós

e tu também!

Nos gestos com que trabalhavas a terra

e a fazias produzir frutos;

Nas mãos queimadas pelo sol estival,

mas que geravam esperanças;

Nos sons da tua voz

que as paredes da casa ainda ecoam;

Nas pegadas que gravaste no solo barroso

e dentro de cada um de nós, teus filhos;

 

Saudades de ti que afinal são saudades de nós!

 

E, na distância desses quinze anos, a lembrança

dói na mesma como se fosse ontem!

 

A verdade é que não foi ontem:

foi hoje, porque cada dia estás connosco!

 

JM

 

Quero Acabar

    Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
    Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
    Falem pouco, devagar.
    Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
    O que quis?  Tenho as mãos vazias,
    Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
    O que pensei?  Tenho a boca seca, abstrata.
    O que vivi?  Era tão bom dormir!

 

   Álvaro de Campos

Marília de Dirceu

Lira V

Acaso são estes

Os sítios formosos.

Aonde passava

Os anos gostosos?

São estes os prados,

Aonde brincava,

Enquanto passava

O gordo rebanho,

Que Alceu me deixou?

                São estes os sítios?

                São estes; mas eu

                O mesmo não sou.

                Marília, tu chamas?

                Espera, que eu vou.

 

Daquele penhasco

Um rio caía;

Ao som do sussurro

Que vezes dormia!

Agora não cobrem

Espumas nevadas

As pedras quebradas;

Parece que o rio

O curso voltou

                São estes os sítios?

                São estes; mas eu

                O mesmo não sou.

                Marília, tu chamas?

                Espera, que eu vou.

Meus versos alegre

Aqui repetia:

O eco as palavras

Três vezes dizia,

Se chamo por ele,

Já não me responde;

Parece se esconde,

Casado de dar-me

Os ais, que lhe dou.

                São estes os sítios?

                São estes; mas eu

                O mesmo não sou.

                Marília, tu chamas?

                Espera, que eu vou.

 

Aqui um regato

Corria sereno

Por margens cobertas

De flores, e feno:

À esquerda se erguia

Um bosque fechado,

E o tempo apressado,

Que nada respeita,

Já tudo mudou.

                São estes os sítios?

                São estes; mas eu

                O mesmo não sou.

                Marília, tu chamas?

                Espera, que eu vou.

 

Mas como discorro?

Acaso podia

Já tudo mudar-se

No espaço de um dia?

Existem as fontes,

E os freixos copados;

Dão flores os prados,

E corre a cascata,

Que nunca secou.

                São estes os sítios?

                São estes; mas eu

                O mesmo não sou.

                Marília, tu chamas?

                Espera, que eu vou.

 

Minha alma, que tinha

Liberta a vontade,

Agora já sente

Amor, e saudade,

Os sítios formosos me agradaram,

Ah! Não se mudaram;

Mudaram-se os olhos,

De triste que estou.

                São estes os sítios?

                São estes; mas eu

                O mesmo não sou.

                Marília, tu chamas?

                Espera, que eu vou.

 

Tomás António Gonzaga

Tu tens um medo

 

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

 

Cecília Meireles

Amor

 

A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.

Miguel Torga, in 'Libertação'

A Terra



Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

 

Miguel Torga

O Espírito

 

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estróina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

 

Natália Correia

 

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