Uma ave passava
lenta e solene
na tarde aveludada
de um Setembro oblíquo
deixando no ar
gestos perfeitos
de um equilíbrio inato.
À sombra das poucas nuvens
traçava esquissos
de parábolas e ogivas ambíguas.
Animava-a, contudo, a beleza ingente
duns gestos gritados
na certeza inexorável
de uma liberdade absoluta.
J. M.
No escuro translúcido do tempo
restam vaga-lumes artificiais
que impedem o pensamento
(grave e duro contratempo!)
de mergulhar nas metáforas existenciais.
E do subconsciente diluído
chegam Platão, Aristóteles, Zenão,
Epicuro e tantos outros mais
em suas cavernas e mundos ficcionais
produtos da noê , da paixão
que, na vida, arrastam o coração.
J. M.
O LARGO
Tudo se resolveu partir naquela tarde.
O Largo ficou triste, solitário e temeroso.
No silêncio ouvia-se um respirar afogueado
revolvendo-se num pavor misterioso.
Ergueu-se, de repente, um grito vermelho
(o silêncio fugiu branco e veloz)
inerte, inócuo e pervertido
grito de loucura de um mundo a sós.
J.M.
“tempus fugit”
O tempo espantou-se e fugiu amedrontado;
as avezitas gorjearam de medo
pois pelos ares passaram
aves estranhas e loucas
cheias de sangue e morte,
de loucura e desespero.
J. M.
Apetece-me morder o chão das palavras,
rasgar-lhe as veias;
vê-las tremer de agonia
prostradas aos pés de mim.
Voar no espaço com elas,
percorrer o tempo eterno,
gemer na hora incerta
e gastar até ao âmago
o inegastável segundo.
J. M.
As andorinhas espreguiçavam-se
na manhã fresca de Julho
estupefactas com o nevoeiro circundante
e preparavam-se para partir
quando lhes chega de súbito
o sol de um sorriso perturbador.
Afinal deram-se conta
que o Verão mal tinha começado.
J. M.
Neste Verão abrasador comi gelado
e abafei a noite torturante de angústia.
Abanado na paixão louca do momento,
viajei pela noite, sombra do tempo…
Mágica, na liquidificação da humidade,
sobre o envelope deixado na mesa,
passeia-se uma mosca nojenta,
como a política tardia do Verão,
entusiasmada de loucuras ambíguas
de sexo e SIDA à mistura…
Canetas de reclame ambíguo
fabricando clientes a engano…
De Massamá, sei o tempo de nós,
fechado na memória esguia de Verão…
Já nada é o que era, na efemeridade
das horas, grávidas de cinzento.
J. M.
[Se fosse hoje o verso 10 poderia falar da gripe A; na altura em que escrevi o poema a "coqueluche" do Verão era mesmo a SIDA! Sinais dos tempos!]
“Quando eu morrer...”
(A M.S.-C.)
Se eu morrer sozinho, não se importem.
É assim que eu quero morrer.
Deixem-me gozar mais este prazer só,
porque solitário é que estou bem.
No meu funeral não quero ninguém,
ouviram: NINGUÉM!
Se em vida ninguém me quis
e isolado e sozinho fui feliz,
agora não serve de nada
irem em multidão anonimada
atrás das tábuas do meu caixão
a carpirem amizades fingidas
que em vida nunca senti.
Dêem-me mais esta consolação:
continuem lá as vossas vidas
e deixem-me partir sozinho como vivi.
J.M.
CIDADE
A cidade é um chão de culturas variadas
é fermento corado na masseira de suores
e vida fertilizante poema de dias melhores
é pastor de muitas vidas rebanho de mil cabeças
esperanças semi - desfeitas glórias bem apregoadas.
A cidade é projecção da luta continuada
que todos os dias renasce na certeza do entardecer
porém ao alvorecer quando o sol se levanta
há uma angústia latente no coração dos homens.
A cidade é malícia com bondade à mistura
é antro de solidão ou bar/café de frescura;
lógica entrelaçada nos esgares da paixão
onde perdura a noite na aurora do coração.
J M
Embalado nas brisas estivais
e nas modorras de um Julho esquisito
luto contra a sonolência de uma tarde quente
amenizada pela brisa fresca do nordeste.
O planalto estende-se assolapado
à torreira do mormaço pós meio-dia
e as árvores gritam ensimesmadas
pela gota de água perdida.
Esparramados pelas sombras das raras plantas
os gados enganam-se na miragem
de uma frescura aparente saída da terra
avidamente sequiosa do licor cristalino.
Só o bicho homem na sua racionalidade
ilude pelo sumo ou pela cerveja
o calor tórrido de um Verão obsidiante.
J. M.
[Começo hoje a publicação dos poemetos que em Fevereiro passado estiveram em exposição no Café Concerto e a que dei o título: "fugaCIDADEs". Faço-o a pedido de algumas pessoas que não puderam passar por lá na altura. Deixem passar a ironia de hoje ser Julho, mas estar a chover lá fora e ir assim contra o que diz o texto! Além disso o vento hoje é de Sudoeste!]