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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

florbela

 


Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.


E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Cantiga de Amigo

Nem um poema  nem um verso  nem um canto
tudo raso de ausência  tudo liso de espanto
e nem Camões  Virgílio  Shelley  Dante
o meu amigo está longe
e a distância é bastante.

Nem um som  nem um grito  nem um ai
tudo calado  todos sem mãe nem pai
Ah não  Camões  Virgílio  Shelley  Dante!

o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.

Nada  a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai  Camões  Virgílio  Shelley  Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!

Ary dos Santos

 
 
 
 

Área de Projecto e TMG

Não acredito que tenha sido o poema de David Mourão-Ferreira que provocou a paragem do meu PC, mas a verdade é que só hoje retomei o contacto com a net e numa solução provisória. Entretanto e já com atraso queria congratular-me com as actividades dos alunos da Escola Afonso de Albuquerque que estão aí em força o que vem provar o valor desta GERAÇÂO. Foi na 2ª feira a tão mediática conferência do Dr Jorge Sampaio, cujas fotos e reportagem podem apreciar aqui  e já se anuncia outra actividade para os próximos tempos a desenvolver também no âmbito da disciplina Área de Projecto. E o TMG, na pessoa do seu Director, a dar apoio a esta juventude dinâmica e interessada que nos faz manter esperança no futuro.

E por vezes as noites duram meses

 

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

 

David Mourão-Ferreira

Quero voar

 

Quero voar
-mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer
-mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
-tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algemas...

(Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.)

 

José Gomes Ferreira

MEMORIA - Jose Emilio Pacheco


No tomes muy en serio
lo que te dice la memoria.

A lo mejor no hubo esa tarde.
Quizá todo fue autoengaño.
La gran pasión
sólo existió en tu deseo.

Quién te dice que no te está contando ficciones
para alargar la prórroga del fin
y sugerir que todo esto
tuvo al menos algún sentido.

 

(Poeta mexicano galardoado hoje com o Prémio Rainha Sofia! Nasceu a 30 de Junho de 1939 na cidade do México. Mais poemas em http://amediavoz.com/pacheco.htm )

 

A boca


A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

que pode uma boca
esperar
senão outra boca?

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.
 
 
Eugénio de Andrade
 

"As MÃES" - EUGÉNIO DE ANDRADE

   Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto — não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara dei Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês — e que só ela, só ela vê.

 

Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.

"As Mães" in Rosa do Mundo © Assírio & Alvim, Lisboa, 2001