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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Helga Moreira

 

Tenho a vida feita num novelo,

não pertenço a lado nenhum,

não tenho

país ou terra, nenhuma raiz,

nem escolhas ou nome,

nada a dizer, nada a calar,

 

nem harmonias ou crenças

nem desígnios.

 

Uma linha apenas

num mar de mós

sem moinhos.

 

(Os dias todos assim, & etc.)

 

 

Helga Moreira nasceu em Quadrazais, Guarda, 29 de Abril de 1950 é uma poetisa portuguesa. Publicou o primeiro livro em 1978, em 1996, Os Dias Todos Assim e, em 2002, Desrazões. Colaborou no volume Vozes e Olhares no Feminino (2001). Vive no Porto desde 1968.

 

[http://poemas-poestas.blogspot.com/]

ABRIL

[http://animaleja.no.sapo.pt/cravo.gif]

 

"Somos filhos da madrugada"

não queremos voltar à noite escura,

e na luz clara de Abril

gritaremos até que a voz nos doa:

nem opressão, nem ditadura!

 

Já que tanto custou construir

a estrada da liberdade

não voltaremos a deixar surgir

os vampiros sedentos na cidade,

enrouqueceremos a gritar:

"somos livres de voar"!

 

24.04.09 - JM

 

É bom também irmos recordando Zeca Afonso, sabe-se lá o que nos espera!

 

VAMPIROS

 

No céu cinzento

sob o astro mudo
Batendo as asas

Pela noite calada
Vêm em bandos

Com pés veludo
Chupar o sangue

Fresco da manada

Se alguém se engana

com seu ar sisudo
E lhes franqueia

As portas à chegada
Eles comem tudo

Eles comem tudo
Eles comem tudo

E não deixam nada 

A toda a parte

Chegam os vampiros
Poisam nos prédios

Poisam nas calçadas
Trazem no ventre

Despojos antigos
Mas nada os prende

Às vidas acabadas

São os mordomos

Do universo todo
Senhores à força

Mandadores sem lei
Enchem as tulhas

Bebem vinho novo
Dançam a ronda

No pinhal do rei

Eles comem tudo

Eles comem tudo
Eles comem tudo

E não deixam nada

No chão do medo

Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos

Na noite abafada
Jazem nos fossos

Vítimas dum credo
E não se esgota

O sangue da manada

Se alguém se engana

Com seu ar sisudo
E lhe franqueia

As portas à chegada
Eles comem tudo

Eles comem tudo
Eles comem tudo

E não deixam nada

Eles comem tudo

Eles comem tudo
Eles comem tudo

E não deixam nada

http://www.youtube.com/watch?v=ZUEeBhhuUos

Dia Mundial do Livro

É amanhã e, para a comemoração, o TMG pediu a sugestão de um livro importante para mim: obviamente não é só um e podia ter citado vários, mas para não fugir às expectativas referi aquele que me marcou mais e no qual me revi em alguns "dias". Podia ter indicado o primeiro romance que li às escondidas aos doze anos: "Os fidalgos da casa mourisca" de Júlio Dinis; ou então a "Bíblia"; ou os poemas de Fernando Pessoa, Sophia, Eugénio; ou "Os Maias", ou ... sei lá, foram tantos nestes anos todos e ainda bem porque com todos se aprende. O livro é sempre um bom amigo!

Saiu hoje no blogue do TMG - aqui:

http://teatromunicipaldaguarda.blogspot.com

22.4.09

Livros. As escolhas de Honorato Esteves, Osório de Andrade e José Monteiro

 


Hoje divulgamos as selecções de livros de Honorato Esteves (professor), Osório de Andrade (escritor) e José Monteiro (professor). Estas três personalidades escolheram, respectivamente, "Um dia na vida de Ivan Denisovich" de Alexandre Soljenitsin, "CULTURA Tudo o que é preciso saber" de Dietrich Swarnitz e "A Criação do Mundo” de Miguel Torga.

No Café Concerto - trata-se de uma iniciativa no âmbito do
Table of Contents, dedicado ao Dia Mundial do Livro - poderá encontrar nos stand up's informativos estas e outras escolhas de livros feitas por diversas personalidades da Guarda.
Boas leituras!
 

Dia Mundial da Terra

A Terra

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

Miguel Torga

Esteiros

 No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras; mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinhos. Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre, à hora do pagamento.

- Se não se calam, racho um! - vociferou ele, avançando para a porta da barraca.

Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximos recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe:

- O melhor é matar-nos!

- Para quê, pá? Só levava ossos... – comentou Sagui, indicando o corpo enfezado.

- Ou calam-se, ou paro com isto!

Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira, e a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia.

O pagamento prosseguiu.

- Malesso!

- Pronto – e agitando na mão o dinheiro recebido, exclamou: - Este é pró fato novo...

- Novo de há dois anos, aldrabão - casquinou Gineto.

- Amanhã é que se vê.

- Sagui! - chamou o mestre.

- Cá estou.

Detrás, um companheiro perguntou:

- Vais comer todos os bolos da Feira co isso?

- Se cá couberem...

Bateu na barriga, e a malta riu. Sagui era pequeno, mas tinha fama de comilão. Só fama...

O mestre continuou:

- Guedelhas!

- Pronto.

O moço saiu cabisbaixo, a contar a féria que os irmãos e o pai, desempregado há dois meses, esperavam.

Os companheiros sabiam disso, e não gracejavam.

- Gineto!

Sem responder, o moço adiantou-se, devagar.

-Tiveste sorte, hem! - disse o mestre com ironia. - Desta vez deitaste fora a temporada.

- Foi por gostar muito de você.

Frente a frente, olharam-se com raiva.

- Malandro... — rugiu o mestre.

- Cão! - ripostou Gineto. E saiu lépido, empurrando os companheiros.

Um destes gargalhou:

- Foge, Gineto.

- Foge o quê, pá? - estacou ameaçador. - Se ele me comer, tem que me largar pelo rabo. Que julgas?

O outro calou-se, amedrontado, e Gineto seguiu caminho, maldizendo o mestre e o telhal.

Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho. Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.

- Mestre: tome-me conta deste fidalgo.

Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez da ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.

Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam-  -se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta - era junco - e o lixo era lixo, apenas. Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: «Toma-me conta do pequeno!» Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido.Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.

Desta vez, porém, foi dominado pela Feira. Queria desforrar-se nos cinco dias festivos, sem os berros do mestre e as pancadas do pai. Iria ver os acrobatas do circo; daria tiros ao canhão e passeios nos cavalinhos. E até havia de estancar o ardor do sangue, dentro das barracas de reposteiros vistosos, onde mulheres pintadas vendiam refrescos e beijos. Seria senhor da Feira e do seu destino; livre, como um homem.

Mas era preciso dinheiro, e então ficara no telhal. E, como um homem, vendeu os braços para que o dinheiro tilintasse agora no bolso das calças. Gineto sentia-se tão feliz que não se lembrou das lágrimas que a mãe havia de chorar por ele e pela féria da semana. Subiu o beco do Mirante a assobiar. As quintas estavam ali em frente a retalhar os vales e a seduzir olhares. O sol, ainda alto, tomava mais branco o branco dos muros e revivescia com reflexos doirados as folhas estioladas das videiras. Mas Gineto não receava a luz da tarde. Tinha a certeza que os caseiros não estariam de atalaia, entre os pomares, porque a melhor fruta já fora apanhada. O moço do telhal sabia de colheitas. Todavia, chegado à estrada, hesitou. Pela primeira vez as suas quintas — suas, como ele dizia — não o atraíram. A Feira afagava-lhe o pensamento; o dinheiro tilintava no bolso... Era livre, sem a perseguição dos caseiros e cães de guarda... Não iria às uvas.

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, Círculo de Leitores (pp. 10-12)

 

[No seguimento do post anterior e para quem nunca leu, aqui fica um cheirinho da magnífica prosa de Soeiro Pereira Gomes e da sua grande capacidade narrativa.]

 

Páscoa (2)

PÁSCOA

Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.


Miguel Torga, in Diário XVI

Páscoa

flores do campo

(www.orientalflores.com.br/.../flores_campo_1.jpg)

 

"Glória"

 

"Depois do Inverno, morte figurada,
A Primavera,
uma assunção de flores.
A vida Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores."


Miguel Torga, diário XIV

 

[A todos os que por aqui passam, para ver, para ler, para partilhar ou por outro motivo qualquer, que as flores, anunciadoras de felicidade e RESSURREIÇÃO, lhes signifiquem o meu apreço e a minha gratidão. Claro que nesta ocasião não podia faltar a mestra voz inimitável a coadjuvar as minhas humildes palavras.]

 

STABAT MATER / Pietá

Stabat Mater
STABAT MATER
Tu, mãe de Deus, Nesta hora e sempre Mãe d'Ele e nossa mãe, Pare-o com dor humana E renovada E consagrada, A Ele, que nós buscamos Com outros e afinal equivalentes credos, A quem chamamos nos desolados medos, Talvez com outro nome Porque é diversa a língua E não a fome Que lhe temos.
 
 
PIETÁ
 
Já lívido repousa em seu regaço. Já não escuta, não vê, não ri, não fala. Aquele que foi Seu filho, Ela o embala Morto, alheia a tempo e espaço. O mistério parou no limiar dos assombros. Dos irados profetas, das rígidas escrituras Sobra um Deus morto; e os únicos escombros São a atónita aflição das criaturas. Eles choram, vários, como vários são Sua revolta e sua dor. Absorto, O olhar da Mãe escorre, inútil, no chão. Ela, o que chora? O Deus parado - ou o filho morto?
 
Reinaldo Ferreira

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