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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

fugaCIDADEs

Pergunta impertinente: "Por que é que a iminência de um facto doloroso é mais angustiante que o facto em si?"

 

 

Sem tempo nem disposição para passar por aqui. Só a informação de que, por amável convite, as minhas breves e leves palavras estarão no Café Concerto. Mais informações aqui.

Bicarbonato de Soda

 

     Súbita, uma angústia... 
     Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma! 
     Que amigos que tenho tido! 
     Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! 
     Que esterco metafísico os meus propósitos todos! 

 

     Uma angústia,  
     Uma desconsolação da epiderme da alma,  
     Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... 
     Renego. 
     Renego tudo. 
     Renego mais do que tudo. 
     Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles. 
     Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na 
      circulação do sangue? 
     Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro? 

 

     Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? 
     Não: vou existir.  Arre!  Vou existir. 
     E-xis-tir... 
     E--xis--tir ... 

 

     Meu Deus!  Que budismo me esfria no sangue! 
     Renunciar de portas todas abertas, 
     Perante a paisagem todas as paisagens, 

 

     Sem esperança, em liberdade, 
     Sem nexo, 
     Acidente da inconseqüência da superfície das coisas, 
     Monótono mas dorminhoco, 
     E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas! 
     Que verão agradável dos outros! 

 

     Dêem-me de beber, que não tenho sede!

 

Álvaro de Campos

Álvaro de Campos

 

Começo a conhecer-me. Não existo. 
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,  
ou metade desse intervalo, porque também há vida ... 
Sou isso, enfim ...  
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. 

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.  
É um universo barato.

Aos Poetas

 

Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!

 

Miguel Torga

 

[Fez ontem anos que o seu espírito rebelde e indomável deixou de nos mimar com exemplos de poesia e de vida (que são a mesma coisa!). Mas o seu testamento já estava feito e o legado perdura: saibamos aproveitá-lo.] 

"Eu hei-de encontrar...."

 

A propósito, ou melhor, a despropósito deste livro a lhaneza destas palavras:

 

 

"eu hei-de encontrar

aqui

ainda a terra",

seja a silenciosa Serra

das palavras de Melo,

arborizada em sisudo cabelo,

seja o sábio eco

de São Pedro de Rio Seco

que faz fronteira com Castela.

Mais alta é a Estrela,

montanha mágica

de gárgulas falantes,

pensantes,

atracção quase trágica,

mas a planura transcudana

GUARDA também a sabedoria

secreta e arcana

da grega SOFIA.

 

José Monteiro 11.01.2009

MÃE

 

Palavras para a Minha Mãe

 

 

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

 


O poeta diz tudo: às vezes esquecemo-nos de dizer aos nossos o quanto nos são indispensáveis e depois pode ser tarde!!! 94 anos de dádivas aos outros merecem palavras carinhosas e filiais: vou dizer-lhas antes que seja tarde!

Prece

 

Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.

Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição:
Onde era sim, digo não,
Onde era não, digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.

Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro dum inimigo...
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.
 
Miguel Torga, Diário
 
    Porque há dias (ou tempos) em que a condição de mortais é mais premente e nos leva a reflectir no nada que somos, no dependentes que somos, na fragilidade que nos acompanha desde a nascença à sepultura!!! E Torga, apesar de médico (ou porque o era), sentiu-o bem e ninguém o soube dizer melhor que ele.

 

CERTEZA

 

 

Sereno, o parque espera.

Mostra os braços cortados,

E sonha a primavera
Com os seus olhos gelados. 

É um mundo que há-de vir
Naquela fé dormente;
Um sonho que há-de abrir
Em ninhos e semente.
 
Basta que um novo sol
Desça do velho céu,
E diga ao rouxinol
Que a vida não morreu.
 
Coimbra, 2 de Janeiro de 1943, Diário