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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

TERRA HUMANA

Coimbra, 30 de Novembro de 1953.

TERRA HUMANA

E inútil desistir.

Por detrás das muralhas da vontade

Mora o desejo, a força que as derruba.

Deixa que nasça, que avolume e suba

Esta maré de seiva e de ternura!

A grandeza do homem, criatura

Que cresce enquanto ama e pode amar,

É saber

Que só depois do gosto de pecar

Lhe vem o gosto de se arrepender.

 

Torga, Diário VII

Terra

Monforte do Alentejo, 29 de Novembro de 1964.

BANQUETE

Encho os olhos de terra.

No Alentejo há muita e é de graça.

Dou-lhes esta fartura,

Antes que um só torrão, na sepultura,

Os cegue e satisfaça.

 

Torga, Diário X

MAGNIFICAT

Coimbra, 28 de Novembro de 1981.

MAGNIFICAT

Ai, a vida!

Quanto mais me magoa, mais a canto.

Mais exalto este espanto

De viver.

Este absurdo humano,

Quotidiano,

Dum poeta cansado

De sofrer,

E a fazer versos como um namorado,

Sem namorada que lhos queira ler.

Cego de luz, e sempre a olhar o sol

Num aturdido

Deslumbramento.

Cada breve momento

Recebido

Como um dom concedido

Que se não merece.

Ai, a vida!

Como dói ser vivida,

E como a própria dor a quer e agradece.

 

Torga, Diário XIII

808 anos

    No cimo de monte inhospito,

junto da nevada Estrella,

se ergue uma cidade. É n'ella

que vamos, leitor, entrar.

É fria, ventosa e húmida

feia, denegrida e forte,

que o reino, contra a má sorte,

era obrigada a guardar.

Por isso é GUARDA o seu nome;

pois sempre voltada á Hespanha,

de pé, na sua montanha,

a espia no seu lidar.

É hoje, rotos os muros,

veterano sem guarita,

já sem farda e sem marmita,

mas firme sempre a guardar!

Nos annos da nossa história,

era mais triste e mais pobre;

mas sempre leal e nobre,

não quiz a face voltar.

O mais valente guerreiro

pôde morrer na peleja;

mas veja a morte ou não veja,

há de o seu posto guardar.

Durante a quadra invernosa,

gelos dos tectos pendentes,

semelham lustres luzentes,

que o sol desfaz a brincar;

tal se vê crystallisado

crespo bigode guerreiro,

após noite de janeiro,

toda velada a guardar.

Tomás Ribeiro, D. Jayme

(José M. T Mota Romana, Antologia de escritores da Guarda)

NOITE

Coimbra, 26 de Novembro de 1943.

NOITE

Noite, manto do nada

Onde se acolhe tudo,

Melodia parada

Nos ouvidos dum mudo.

Mãe do regresso, paz

Da batalha perdida;

Leiva morta onde jaz

A renúncia da vida.

Pecado sem perdão.

Aceno sem ternura;

Noite, o meu coração

Anda à tua procura.

 

Torga, Diário III

...

 

Coimbra, 25 de Novembro de 1987.

RESUMO

De nadas fiz o todo dos meus dias

E dei à vida a freima de a viver

Inutilmente, embora, quis honrá-la

Como se de um sagrado dote se tratasse.

Agora, posso ter a paz cansada

De quem lucidamente foi fiel

Ao seu destino:

Impuro, a oficiar nas aras da pureza.

Sonâmbulo, a tactear a natureza,

E agonizante já desde menino.

 

Torga, Diário XV

Poema em linha recta

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão - princípe - todos eles princípes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

                             Álvaro de Campos

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

                      Álvaro de Campos

R Reis

Ode XXXI

 

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

 

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

 

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

 

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

 

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

D. DINIS

 
 

Lisboa, Mosteiro de Odivelas, 21 de Novembro de 1984.

D. DINIS

Dorme na tua glória, grande rei

Poeta!

Não acordes agora.

A hora

Não te merece.

A pátria continua,

Mas não parece

A mesma que te viu a majestade.

Dorme na eternidade

Paciente

De quem num areal

Semeou um futuro Portugal,

Confiado na graça da semente.

 
Torga, Diário XIV

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