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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Saudades da infância

S. Martinho de Anta, 30 de Setembro de 1956.

CONTEMPLAÇÃO

Num berço de granito,

Com a manta do céu

A cobrir-lhe a nudez,

A minha infância dorme.

Nem bruxas, nem fadas

A velar-lhe o sono.

No mais puro abandono

Do passado,

Respira docemente,

Enquanto eu, inútil enviado

Do presente,

Sobre ela me debruço,

E soluço.

 

Torga, Diário VIII

[Pois é, sem nos darmos conta aí está Outubro com as suas promessas invernais, as chuvas, as saudades de um sol criador e a invasão dos nevoeiros persistentes e teimosos. Será que S. Francisco vai trazer o costumado mini-verão? ]

Chuva

Coimbra, 29 de Setembro de 1982.

RESSONÂNCIA

Desfaço com palavras o silêncio

Desta hora vazia.

E fico a ouvir, num desespero atroz,

A solfa ensandecida.

Serão versos que canto sem medida,

Ou ergo apenas a voz

No túmulo da vida?

 

Torga, Diário XIV

Poeta

S. Martinho de Anta, 28 de Setembro de 1965.

UM POEMA

Um poema, poeta!

É o que a vida te pede.

A fome diligente

Colhe

E recolhe

Os frutos e a semente

Doutros frutos.

Junta à fecundidade

Da natureza

Os frutos da beleza...

Versos grados e doces

Na festa do pomar!

Versos, como se fosses

Mais um ramo, a vergar.

 

Torga, Diário X

QUIETUDE

S. Martinho de Anta, 27 de Setembro de 1980.

QUIETUDE

Que poema de paz agora me apetece!

Sereno,

Transparente,

A sugerir somente

Um rio já cansado de correr,

Um doce entardecer,

Um fim de sementeira.

Versos como cordeiros a pastar,

Sem o meu nome, em baixo, a recordar

Os outros que cantei a vida inteira.

 

Torga, Diário XIII

Palheiros de Mira

Palheiros de Mira, 26 de Setembro de 1948.

IDADE DA POESIA

O verso é o mesmo no papiro aberto

Da praia visitada pelas ondas;

A mesma fúria sobre um chão incerto

E o mesmo grito com vogais redondas.

ÍCARO

O alcatraz atira-se do alto.

Dobra as asas, e cai.

Do céu à terra é um salto.

Do céu ao mar, um gesto.

Longe, fica o protesto

Que não sobe aonde vai.

.Torga, Diário IV.

O silêncio das fragas

S. Martinho de Anta, 25 de Setembro de 1985.

DISPERSÃO

Perco-me na paisagem,

Planáltico, também,

E, como ela, aberto aos largos horizontes.

Deambulo, parado,

A ouvir, alheado,

O silêncio das fragas

E a música do vento.

Deixo que o pensamento

Não tenha direcção

E seja apenas uma ondulação

A mais

Da natureza.

E canto, sem cantar,

Versos incertos, na incerteza

De mais tarde os lembrar.

 

Torga, Diário XIV

Angústia de poeta

Caldelas, 24 de Setembro de 1949.

SOLIDÃO CRIADORA

Dorme e sonha a meu lado

Tão alheia de mim

Que me sinto um amante abandonado.

Acordá-la?

Gritar?

O poeta é uma angústia que se cala,

A cantar.

 

Torga, Diário V

Grécia

Taormina, 22 de Setembro de 1950.

                ELEGIA SICILIANA

Grego não, que não sou, mas que saudades

Duma Grécia de artistas e de crentes

Em paisagens e formas permanentes

Onde se apaga a marca das idades!

Pobre latino, já cristão, perdido

Para os deuses pagãos, homem vencido

Pelo arrocho da cruz,

Não tenho olhos, nem serenidade,

Para olhar a verdade

Desta luz.

 

Torga, Diário V

ALQUIMIA

S. Martinho de Anta, 21 de Setembro de 1947.

ALQUIMIA

Arrefece.

A fogueira do sol vai-se apagando

Na casca das maçãs que amadurece.

Vai a vida passando.

Mas havendo uma Eva

Que no inverno, depois, venha tentar

O homem,

O sol e a vida podem-se encontrar

Nas maçãs que se comem.

 

Torga, Diário IV

MUSA e ANTEU

Chaves, 20 de Setembro de 1963.

MUSA AUSENTE

Falta a luz dos teus olhos na paisagem:

O oiro dos restolhos não fulgura.

Os caminhos tropeçam, à procura

Da recta claridade dos teus passos.

Os horizontes, baços,

Muram a tua ausência.

Sem transparência,

O mesmo rio que te reflectiu

Afoga, agora, o teu perfil perdido.

Por te não ver, a vida anoiteceu

À hora em que teria amanhecido...

 

Torga, Diário XI

S. Martinho de Anta, 20 de Setembro de 1968 — De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida deque os resultados obtidos confirmam a sua veracidade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva. Sei, contudo, que o prodígio não aconteceria sem a força amorosa do meu apelo, que as virtudes terapêuticas da fonte estão  ambém na certeza da sede de quem bebe. A fé que no Evangelho move montanhas, é, claramente, a mesma que na Grécia, de uma maneira mais bela e profunda, permitia a cada mortal ressuscitar no seio da própria matriz. Por isso, à medida que repito o gesto salutar, vou conferindo o grau da minha crença nele. E quando chegar o dia em que a debilidade do ânimo seja tanta que já não consiga sequer confiar no valor do condão? Finos, os antigos entenderam logo de entrada que o fabuloso não é mais do que a realidade aureolada. Que basta um homem ficar com a vontade tolhida para que Héracles — um dos muitos disfarces da morte — o vença irremediavelmente. Mas como compreenderam ao mesmo tempo que convinha em todas as circunstâncias preservar a beleza das alegorias, o carrasco só levanta a vítima nos ombros, e torna assim impossível o contacto miraculoso, no preciso momento em que ela não é mais do que a encarnação da indiferença.
    Devotado de corpo e alma a estes montes, não concebo desgraça maior do que deixá-los para sempre na sombra de uma saudade desiludida. E tento viver na esperança de que o Héracles que tenha de me suspender impiedosamente nos braços fatídicos se antecipe à hora marcada no relógio do destino, e ganhe a partida a custo, comigo ainda a espernear e a ver a salvação a dois palmos, sem conseguir atingi-la de maneira nenhuma, por mais desesperadamente que estenda a mão confiada...
Diário XI

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