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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Poeta/profeta

A bordo para o Brasil, 31 de Julho de 1954.

JONAS

Do ventre da baleia me interrogo;

Da negrura do ventre

Do navio em que vou, monstro marinho.

De que Nínive fujo, e a que Társis me leva

Este caminho?

Ah, se os poetas fossem como outrora

Instrumentos de Deus!

Não teriam no mundo, como eu tenho agora,

A trágica incerteza

Do seu destino.

Devorados ou não,

Iam sempre na mesma direcção

Do roteiro divino.

 

Torga, Diário VII

Pedra

Coimbra, 30 de Julho de 1968.

CANTILENA DA PEDRA

Sem musa que me inspire,

Canto como um pedreiro

Que, de forma singela,

Embala a sua pedra pela serra fora...

Upa! que lá vai ela!

Upa! que vai agora!

A pedra penitente que eu arrasto

Tem o tamanho duma vida humana.

E só nesta toada a movimento,

Embora o salmo já me saia rouco.

Upa! meu sofrimento!

Upa! que falta pouco...

 

Torga, Diário X

Domingo

Coimbra, 29 de Julho de 1984.

ACORDE

Mais um domingo inútil no calendário.

A não ser que um poema o torne necessário

À cósmica harmonia.

O gorjeio dum pássaro na paisagem

Parada

Torna-lhe a imagem

Animada

Nos olhos de quem ouve a melodia.

 

Torga, Diário XIV

Silêncio

Coimbra, 28 de Julho de 1979.

PURIFICAÇÃO

Não é propositado o meu silêncio.

São as próprias palavras que não querem

Dizer nada de mim.

Cansaram-se do uso

E do abuso

Que fiz delas

A vida inteira.

Prostituídas na minha voz,

Que o tempo corrompeu,

Mentirosas nas horas mais sinceras,

Regressaram de novo à virgindade

Que lhes roubei.

E aguardam servir outra humanidade

Que comece por onde comecei.

 

Torga, Diário XIII

...

Albufeira, 27 de Julho de 1982.

ALGARVE

O mistério do mar,

O milagre do sol

E a graça da paisagem

Na moldura dos olhos.

E a paz feliz de que tenho o que é meu.

Ah, terra bem-amada!

Bênção da natureza

Caiada

De pureza

E nimbada

De saudade.

Algarve. Liberdade

Dos sentidos.

Férias ao sul

Da imaginação.

Ainda a mesma nação,

Mas com outros sinais.

E a memória também

De que todo o além

Começa neste cais.

 

Torga, Diário XIV

Desejo

Coimbra, 26 de Julho de 1949.

FOME INDECISA

Como hei-de saber o que desejo,

Se tudo o que não tenho me apetece?

A minha vida é mesmo essa quermesse

Negativa.

Vivo

A sonhar ser conviva

Doutro banquete.

 

Torga, Diário V

Manhã

Coimbra, 25 de Julho de 1951.

ALVORADA

A lança da manhã furou-me os olhos.

Vejo! Vejo outra vez

A brancura da cal rir-se, contente

De me ver!

Também ela, com luz, ressuscitou,

E de mim ou do sol vai receber

O poema que a noite lhe roubou!

 

Torga, Diário VI

Natureza

Gerês, 24 de Julho de 1975.

PROSTRAÇÃO

Um melro junta a voz à do ribeiro.

E a dupla melodia

É uma aposta feliz no dia

Que amanhece.

Mas a luz acordada permanece

Triste.

Uma sombra resiste

Ao seu abraço.

A sombra que de mim se alarga ao mundo inteiro,

E é como um cansaço

Total e derradeiro...

 

Torga, Diário XII

 

Portugal

Coimbra, 23 de Julho de 1985 — Explicar Portugal! As vezes que o tenho tentado para governo próprio e alheio! Mas dou sempre com a verruma em prego. O que digo ou escrevo nunca me satisfaz, mesmo quando os outros se dão por esclarecidos. Parecendo que não, é misteriosa esta realidade pátria. Pequenez territorial infinitamente diversificada, palco de uma História que excede as crónicas, berço de um povo de impenitentes vagamundos, toda a descrição a diminui e nenhuma síntese a resume. Cabe nos mapas mas não cabe nas palavras. Vocação nacional acordada na bruma dos tempos, a mais ou das mais antigas da Europa, apetece nimbá-la de um halo de predestinação, olhá-la como o desígnio de uma suprema vontade. E, ao fim e ao cabo, é na singela simplicidade de uma génese natural que talvez consista o singular fascínio da sua existência multissecular. O bom não é nascer feito, é fazer-se. E Portugal fez-se. Como, é que causa engulhes. A assumir-se, a pelejar, a empreender, a perseverar. E a verdade é que tem um rosto inconfundível. O rosto da liberdade contra todos e contra tudo, quanto mais em perigo mais confiado. É esse rosto, ao mesmo tempo flagrante e enigmático, convivente e arisco, que me intriga e desafia. Mas acabo sempre por entendê-lo melhor com o coração do que com a razão. Ou não fosse o amor o mais englobante dos nossos dons.

. Torga, Diário XIV

Serra da Estrela

 Porque ontem o céu ficou pardacento, lento e a anunciar tempestade, a vontade de postar dobrou-se à angústia do ser: as minhas desculpas a Torga e aos possíveis leitores. Hoje ficam dois registos díspares em intenções, mas próximos em mito.

Serra da Estrela, Poço do Inferno, 22 de Julho de 1951.

MERGULHO

Tirem o Céu da sua altura triste;

Olhem a cor do inferno aqui no chão:

Verde-esmeralda que, se não existe,

E um milagre de luz em cada mão.

Anjos de barro, o nosso espelho apenas

Deve ser o cristal que viu Narciso:

Água dum poço de ilusões pequenas

Onde morra e renasça o Paraíso.

Coimbra, 22 de Julho de 1958.

FÁBULA DA FÁBULA

Era uma vez

Uma fábula famosa,

Alimentícia

E moralizadora,

Que, em verso e prosa,

Toda a gente

Inteligente,

Prudente

E sabedora

Repetia

Aos filhos,

Aos netos

E aos bisnetos.

À base duns insectos,

De que não vale a pena fixar o nome,

A fábula garantia

Que quem cantava

Morria

De fome.

E, realmente...

Simplesmente,

Enquanto a fábula contava,

Um demónio secreto segredava

Ao ouvido secreto

De cada criatura

Que quem não cantava

Morria de fartura.

.

Torga, Diário

 
 

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