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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Vida!

Coimbra, 30 de Junho de 1950.

ACTA

Trinta de Junho, às quatro e meia certas.

Eis, por meu punho, a exacta notação

Do momento preciso em que atravesso

A janela claustral do consultório,

E me liberto.

Sem mística nas asas que me levam

Homem que simultaneamente voa e anda,

Marco no calendário a hora e o dia

Desta aventura.

Suba a qualquer altura,

Desça a qualquer abismo,

Continua

A condição do barco em que navego.

Por isso, digo aqui quando despego

Da aguilhada, da leiva e da charrua.

Torga, Diário V

...

Campos do Mondego, 29 de Junho de 1941.

PASSEIO

Vou pelos campos fora, a ver

As velhas maravilhas que se sabem:

Milho verde a crescer

E ninhos onde os filhos já não cabem.

Vou como erva ou bicho, que respira

Mas já tem míldio ou peste no tutano;

Vou a ver a mentira

Desta pujança que não dura um ano.

Torga, Diário I

Hino à poesia / vida

S. Martinho de Anta, 28 de Junho de 1986.

REBATE

Tantas palavras que conheço agora

E malbarato

No papel,

Aqui onde só duas aprendi

Com eterno sentido:

Pai e Mãe!

Mas ninguém

Fica fiel à infância.

Crescemos

E perdemos

A inocência

E a sua mágica

Sabedoria.

Adulto que porfia

Nestas soltas de letras alinhadas

E paralelas,

Chego a ter pejo de as escrever.

Que podem dizer elas

Que valha a pena ler?

Coimbra, 28 de Junho de 1988 — Sim, cantei o amor, a esperança, a liberdade e a poesia. E porfio no canto, apesar do cansaço. Foi essa a minha penitência e a minha glória. Doente, tartamudo, tímido, todo eu parecia condenado ao ceptismo e à renúncia. Havia, contudo, dentro de mim outras forças menos aparentes e mais poderosas que não se resignaram à resignação. Uma alma só vale pelas suas contradições. E a que me coube em sorte era um enxame delas. Se muito duvidei, muito confiei. Acossado entre dois fogos, ora me via perdido, ora salvo. Acabou por vencer o poder que mais podia. E ficou dessa luta titânica um hino à vida. Um hino apaixonado, de que é negativo uma elegia desencantada, que teve motivação, foi consciência dolorosa, teimou em ser ouvida, mas não conseguiu impor a sua voz.

Torga, Diário XIV e XV

...

Para repor as alterações de datas ocorridas nos dias antecedentes posto hoje um poema da dia 25: é o que dá ter pouco(!!!) que fazer, até os dias se perdem. O título até serve para pedir desculpas aos possíveis leitores.

 

Lisboa, Hospital de S. Luís, 25 de Junho de 1972.

ORAÇÃO

Ondula, verde palmeira,

No pátio do hospital.

Nessa graça vegetal

Que o céu olha desatento,

Dá-me, através da janela

Desta cela

De sofrimento,

A certeza de que a vida

Continua

Menos soturna e dorida

Lá fora, ao vento da rua.

Torga, Diário XI

solidão

Coimbra, 27 de Junho de 1944.

SOLIDÃO

Só, como a fonte no areal sem vida.

Só, como o sol no céu deserto.

Só, de cabeça erguida,

Humanamente certo.

Só, a nascer, a ser e a morrer,

Recto como um pinheiro que brotou

E cresceu e caiu, sem se torcer

Ao tempo vário que por ele passou.

Torga, Diário III

(Des)Encontros

Coimbra, 26 de Junho de 1966.

DESACERTO

Ternura em movimento,

Vamos os dois — o sol e a sombra juntos,

O futuro e o passado no presente.

O que te digo é urgente;

O que tu me respondes não tem pressa.

A minha voz acaba na vertente

Onde a tua começa.

Apertamos as mãos enamoradas.

Uma quente, outra fria...

E sorrimos às flores que no caminho

Nos olham com seus olhos perfumados,

Tu, de pura alegria;

Eu, de melancolia...

Um a cuidar, e o outro sem cuidados.

Canta um ribeiro ao lado.

Ambos o ouvimos, mas diversamente.

O que em ti é promessa de frescura

À terra da semente semeada,

Em mim é já certeza de secura

De raiz arrancada.

Almas amantes e desencontradas

Na breve conjunção

Que tiveram na vida,

Levo de ti um halo de pureza,

Deixo-te a inquietação duma lembrança...

E é inútil pedir mais à natureza,

Surda ao meu desespero e à tua confiança.

Torga, Diário X

Coimbra / Mondego

Coimbra, 24 de Junho de 1949.

ESTIAGEM LÍRICA

O Mondego secou.

Outro Camões agora que viesse,

Tinha apenas areia

Com que apagar a tinta da epopeia

Que escrevesse.

Pobre da linda Inês já sem ervinhas

Onde pastar a lírica saudade!

Tão verdade

É morrer neste mundo a própria morte.

Nem ao menos a água que bebia!

Vejam que negros fados

Da sorte

E da Poesia...

Torga, Diário  V

Esperança?

ESPERANÇA

Canto.

Mas o meu canto é triste.

Não sou capaz de nenhum outro, agora.

Em cada verso chora

Uma ilusão,

Tolhida na amplidão

Que lhe sonhei...

Felizmente que sei

Cantar sem pressa.

Que sei recomeçar...

Que sei que há uma promessa

No acto de cantar...

Torga, Diário XII

Beira

Oliveira do Hospital, 22 de Junho de 1944 — Quem quiser ver a Idade Média ao natural, venha aqui, a esta espantosa Capela dos Ferreiros. A cavalaria, a religião e o amor, tudo na sua pureza natural.

A cavalaria, numa pequena pedra maravilhosa, que é um documento único da nossa estatuária guerreira; a religião, num retábulo fantástico, que é toda uma teologia; o amor... Mas o amor prefere talvez uma balada:

ROMANCE

Um cavaleiro e uma dama,

Cada qual na sua cama,

Lado a lado;

Mas voltados,

De modo que ele a não veja

E ela tenha de o ver.

Isto à sombra de uma igreja

Que os há-de absolver!

Traição dela?

Excesso dele?

Segredos que o tempo leva,

Mas deixam mágoas de pedra...

Até numa sepultura

A raiz duma amargura

Encontra o sol de que medra.

Dorme, dorme, cavaleiro,

Com tuas barbas honradas;

Dorme, também, linda dama,

Com tuas contas passadas

E teus véus medievais.

E o pecado

Deixai-o assim acordado

Para exemplo dos mortais.

Torga, Diário III

...

Carvalhelhos, 21 de Junho de 1956.

PASTOREIO

Uma cabra-montesa no pascigo;

Fiel ao seu balido,

Um fauno apaixonado;

Entre os dois, um açude adormecido,

Imagem do instinto represado.

Corcunda como a vida,

Uma ponte arqueada de suspiros

A ligar as arribas do desejo;

E um guarda ao passadiço, uma presença humana,

—O pastor, a moral quotidiana...

Torga, Diário VIII

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