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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

pirotecnia

Coimbra, 31 de Maio de 1954.

PIROTECNIA

Faço poemas de papel e tinta,

Sou fogueteiro destes artifícios.

Versos...

Girândolas de sonhos e cilícios

Alinhadas no chão

Das laudas de brancura onde me iludo.

Quando a noite é de mais,

E o sol de nenhum mundo dá sinais,

Ardem dentro de mim, com lágrimas e tudo.

Torga, Diário  VII

Agenda

Coimbra, 30 de Maio de 1968.

AGENDA

Folheio a vida

Num calendário velho.

Dias riscados, como contas pagas.

Domingos de repouso,

Segundas de trabalho,

Sábados de cansaço,

Sem nenhum sentido.

No abismo do nada,

O nada, apenas.

Quem sofreu nestas páginas vazias,

Tão frias,

Tão serenas?

Torga, Diário X

Estrela?

Coimbra, 29 de Maio de 1950.

CLARIDADE POSSÍVEL

Desenhei a nanquim a minha estreia.

Deve ser negro o traço que limita,

Na grande labareda, a pequenina chama

De cada um.

Pétala da rosa universal,

Ninguém a vê, sequer.

Mas é ela que eu tenho e me conduz

Através desta noite desmedida

Onde a luz

Foi brutalmente interrompida.

Torga, Diário V

Musa

Coimbra, 28 de Maio de 1952.

EXORTAÇÃO

Musa, faz-me cantar!

Fura-me os olhos, se preciso for.

Vadio rouxinol encarcerado,

Não me deixes calado

Aos ferros verticais da minha dor.

Força-me o desespero emudecido

E solta o meu protesto em melodia.

Noite é já neste mundo anoitecido

Onde só tem sentido

A luz secreta que nos alumia.

Obriga-me a sonhar outra floresta

De homens em liberdade.

Aves na sua festa,

Que ninguém prende, que ninguém molesta

Com as fronteiras de nenhuma grade.

Torga, Diário VI

MUSA

Coimbra, 27 de Maio de 1977.

ALVORADA

Foi tudo simples: aconteceu.

O dia amanheceu,

Acordei,

E reparei

No milagre concreto de viver.

E cantei

Como um galo feliz.

O que esse canto diz

E que não sei.

Torga, Diário XII

Camilo

Vilarinho de Samarda, 26 de Maio de 1955 — Os homens célebres parecem deixar o fantasma da sua morte nos sítios por onde passaram. A espécie de terror sagrado que paira nesses lugares dá-me a impressão de ser a imagem inquietadora e apenas disfarçada da hera letal colada a todas as vidas, que os não acompanhou no aniquilamento. Cada um de nós, chegada a hora, leva consigo para a sepultura o espectro da própria destruição. O esquife conduz tudo: a chama apagada e as cinzas da fogueira. Mas neles o sim e o não que coexistem no indivíduo, depois do lance fatal, separam-se. O sim parte, e o não fica. É como se a Parca, invejosa da glória intemporal que os perpetua no mundo, permanecesse ali vigilante, à espera de se vingar do próprio fracasso.

Torga, Diário VII

Orfeu

 

Gustave Moreau (1826-1898). Orfeu

 

 

     À falta de registos poéticos no Diário de Torga, fica um poema meu em sua honra. Claro que não chega aos calcanhares do poeta, nem sequer se aproxima, mas é parte de mim e, neste ano de centenário, converte-se em singela homenagem.

 

TORGA

 

                                         Orfeu rebelde

                                         cantou como sempre foi: independente!

                                         contra tudo e todos

                                         sulcou a vida a rodos

                                         poeta do eu irreverente.

                                         Subiu a escada de Jacob

                                         até ao último patamar,

                                         olhou à volta e sentiu-se só.

                                         Mas isso, em vez de o desanimar

                                         deu-lhe força para lutar

                                         incansavelmente

                                         contra o deus omnipotente

                                         que se lhe queria impor

                                         ou que lhe queriam propor.

                                         Descido até ao ínfimo

                                         quis agarrar a humanidade

                                         e elevá-la até ao transcendente

                                         onde o ser mísero imanente

                                         não lhe permitia tal veleidade.

                                          Porém barafustou,

                                          lutou

                                          até lhe ser reconhecido

                                          esse trabalho exaustivo

                                          cansativo

                                          de elevar a insatisfação

                                          aos píncaros da duriense perfeição.

 

                                                                                          Guarda, Março 2007

                                                                                                Gonçalves Monteiro

Aveiro

     

Aveiro, 24 de Maio de 1958 — Gosto desta terra. Não por se parecer com outras lá de fora, com que se não parece, aliás, mas por ser a realidade portuguesa que é — uma originalíssima expressão urbana e humana, ao mesmo tempo firme e movediça dentro do corpo da pátria, cais de embarque e terreiro de discussão, doce e salgada no sabor, e perpetuamente arejada por uma fresca brisa de maresia e revolta. Entra-se nela, e respira-se doutra maneira. O peito oprimido enche-se dum oxigénio imprevisto e generoso, ainda nativo, e já com todo o iodo tónico do largo. O iodo tónico da liberdade...

Torga, Diário VIII

Marão

S. Martinho de Anta, 23 de Maio de 1944.

MARÃO

Serra, seio de pedra

Onde mamei a infância.

Amor de mãe, que medra

Quando medra a distância.

Dura severidade

Tapetada de acenos

Às ilusões da idade

E aos deslizes pequenos.

Velha raiz segura

À universal certeza

De um gesto de ternura

E um pouco de beleza.

Torga, Diário III

Visita

Coimbra, 22 de Maio de 1990.

VISITA

Bateu a morte à porta e não entrou.

Também a tanto a não convidei.

Pelo contrário, sacudi-lhe o vulto.

Sei que nunca gostou da minha vida.

Mas, contra tudo e todos, tinha de me cumprir

Sem cuidar das sanções do desafio.

E por isso teimei no desvario

Desta infrene quermesse.

Infeliz, se me vejo mergulhado

Na negrura da noite do meu fado.

Feliz, quando amanhece.

Torga, Diário XVI

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