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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Alentejo

Évora Monte, 31 de Março de 1946.

CANÇÃO PARA O ALENTEJO

Alentejo, Alentejo,

Vastidão de Portugal

Futuro, continental!

Terra lavrada, que vejo

A ser mar mas sem ter sal.

Ondas de trigo maduro

Onde mais ninguém se afoga:

Danças alegres da roga

Que vindima no meu Doiro

E vem colher o pão loiro

Da inteira fraternidade

Que falta a esta metade

De coração largo e moiro...

Diário III

Primavera

Coimbra, 30 de Março de 1938.

SECURA

Tarde de primavera.

Como quem é do mundo,

Bebo sol e quimera,

E mergulho as raízes mais no fundo.

Vida!

O tutano da terra — seiva!

A semente aquecida

No carinho da leiva!

O que um ser de dois pés sabe dizer!,

Infelizmente, isto de germinar,

Nem se faz a morrer,

Nem se faz a pensar.

Diário I

Torga

Coimbra, 29 de Março de 1943
DIA

Amanhece.

O poeta de penas já cantou.

Já nos seus altos versos adormece

O fantasma da noite que passou.

Como um halo de sonho acontecido,

A luz das coisas vai nascendo em nós;

Desenha-se na sombra o pressentido,

E a vida já tem gestos e tem voz.

Já novamente o sol doira a frescura

Da relva verde e do lençol de linho.

Outra vez há ternura

De gente a ver-se e de se ver caminho.

Diário II

Torga e a pide

Hoje os jornais, concretamente O Público , noticiava que os ficheiros da PIDE relativos a Miguel Torga estão agora disponíveis. Ainda bem; virão confirmar a integridade do Homem e do Médico que sofreu na sua luta pela liberdade. Não admira a imagem lúcida que tinha de Lisboa!

Lisboa, 28 de Março de 1949 — O que falta à beleza de Lisboa é não ter em cada uma das suas colinas o farol de um génio a iluminá-la.

Veneza não é mais bonita do que isto. Simplesmente, soube sempre ter doges do espírito ao lado dos doges mercadores e traficantes. Aqui, as presenças humanas que encheram o passado enchem ainda o presente, e são valores de tráfego. No fundo, os aviões que chegam constantemente à Portela são o regresso das caravelas que partiram. Vasco da Gama reincarnou modernizado e universalizado nos pilotos de agora. Camões e Gil Vicente é que não tiveram eco em ninguém. Nenhum Shelley os vem saudar e acrescentar. E se algum Byron passou, foi para lhes denegrir a condição.

Diário IV

(Ó Sr. Scolari também já foi contagiado pela falta de ambição dos portugueses? Isso de jogar à defesa é muito perigoso! Lembre-se do que diziam os romanos: si vis pacem, para bellum! Ou parodiando os adeptos de um clube: deixe jogar o Quaresma! )

Teatro

Teatro em dia mundial contraposto a teatro mundial que é o que fazem todos os dias uns certos actorzecos que se autocognominam políticos. Teatro da vida: aquele que mais representamos e que às vezes nos sai trocado com o papel invertido. Teatro do amor: as "gaffes"  saem tão bem que até lhe achamos piada - enquanto puxarmos para o mesmo lado! Vivamos, representemos, mas não deixemos de ir ao TEATRO!
E ainda há o teatro da natureza que só alguns artistas sabem interpretar:

                                         

Arrábida, 27 de Março de 1949 — Quando a serra e o mar se juntam, não há nada a fazer nem a dizer. Com fragas e ondas, a vida fica tão perfeita, que seria uma estupidez intervir.

(Diário IV)

Bichos

   Quem nunca leu "Os Bichos" e gosta de animais não deixe de ler; quem já leu ao ler este excerto do Diário vê facilmente as semelhanças: o mesmo amor aos bichos e aos homens, o mesmo antropomorfismo que sempre o distinguiu e o caracterizou. De quem falo? É preciso responder?!
    
S. Martinho de Anta, 26 de Março de 1940 — Uma das últimas vezes que aqui vim, era um bichinho de pêlo muito sedoso, duas orelhitas espetadas ao lado dos olhos vivos, percorrido por uma alegria muscular, tão súbita e tão explosiva, que no mesmo instante estava ajoelhado a mamar na mãe e a subir ao ar como um foguete.
Agora é uma honesta fábrica de leite, barbada, séria, que nas festas só não pega à vara do pálio por ser cabra.
Daqui a uns anos começa a mancar, a perder o pêlo, cega-lhe um olho, secam- -lhe as tetas, e, a gemer como se o mundo fosse acabar naquela hora, morre.
A vida é assim, diz meu Pai.
Mas eu é que não me resigno a esta transfiguração animal, que de puro frémito passa a ser um hábito e, com pouco mais, é uma decrepitude.
Mil vezes então a continuidade de um vegetal. Mil vezes este nunca sorrir, este nunca saltar, este nascer e morrer com a mesma cara, este olhar todas as fases da vida com a mesma seriedade e a mesma compostura.

Diário I

S. Martinho de Anta

S. Martinho de Anta, 25 de Março de 1961.

PÂNICO

Olho, aterrado, a grande mesa posta.

Quem presumiu em mim fome tamanha?

Todo o maná sagrado da montanha

Servido lautamente

A um só conviva!

À luz do sol-poente,

Numa quase agressiva

Pressa de comunhão, as penedias

São raras iguarias

Dum banquete irreal

De que sou comensal

Apenas eu...

Como se um pigmeu

Pudesse devorar num breve instante

A refeição eterna dum gigante!

Diário IX

Primavera

Coimbra, 24 de Março de 1943.

POR UMA PAPOILA

Não a façam sofrer.

Não olhem a nudez da sua cor.

Se a quiserem ver

Adivinhem de longe o seu pudor.

Olhos nos olhos, não:

Cora, descora, agita-se de medo,

E é toda o desespero e a solidão

De ter na própria vida o seu degredo.

E uma donzela que não quer casar.

Veio ao mundo viver

A beleza gratuita de passar

Sem nenhuma paixão a conhecer.

Diário II

E viva a selecção! Que jogo (na segunda parte!)!!!!

Douro

     S. Martinho de Anta, 23 de Março de 1989 — A tarde inteira a galgar à sobreposse, certamente pela última vez, os montes familiares sobranceiros ao Doiro, e a receber nos olhos comungantes cada imagem esplendorosa como um sacramento.

Diário XV

Feira

Já naquele longínquo ano era assim: para quê comentários!!!!!

    S. Martinho de Anta., 22 de Março de 1978 — A feira. O espelho local onde se reflecte a perdição do mundo. Acabou o artesanato, a expressão singular da actividade humana. Nem um barro modelado, nem uma manta tecida à mão, nem um ferro forjado. Plástico a todos os níveis. E o mais trágico é que ninguém dá por isso. Ninguém parece lembrar-se sequer do latoeiro, do cesteiro ou do tanoeiro, que ainda há pouco eram presenças sacramentais nos pontos privilegiados do largo, à frente do mostruário das suas obras manufacturadas. Montes e montes de produtos incaracterísticos, feitos em série, enfartam agora os compradores. Nem escolha possível, nem gosto possível, nem objecção possível.

— Não é sola...

— Faz as vezes...

O tempo é outro, as solicitações são outras, as mentalidades são outras. Até a angústia mudou, pois que mudou a relação do homem com as coisas. Um risco abstracto basta agora à exactidão do nosso perfil.

Diário XIII

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