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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Liberdade

Coimbra, 28 de Fevereiro de 1980 - Atravesso a vida sem lhe dar tréguas, implacável nas palavras e nos sentimentos.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 1981 — Há ocasiões em que os sentimentos valem como argumentos. E calei-o assim: sabia perfeitamente que a liberdade não é a mola real do homem. Que outras forças mais poderosas o solicitam a todo o instante. O fanatismo religioso, os mecanismos económicos ou as paixões políticas, por exemplo. Que não ignorava a que  extremos de servidão podem chegar nações inteiras, cegas pela fé ou rendidas a qualquer ideologia. Que a ideia de que a liberdade é uma força incoercível tem muito de romântico. Simplesmente acontecia que tal romantismo, mesmo exautorado, nunca deixou de fazer frente à opressão, até quando tudo parece perdido. E é essa vontade insofrível de quebrar todas as cadeias que desde rapaz sinto também no âmago da alma, embora tristemente convencido pela dura experiência da vida que este baixo mundo de ilusões não passa de uma redonda clausura.

Diário XIII

Serra da Estrela

Serra da Estrela, 27 de Fevereiro de 1960.

PRESERVAÇÃO

Chama-se liberdade o bem que sentes,

Águia que pairas sobre as serranias;

Chamam-se tiranias

Os acenos que o mundo

Cá de baixo te faz;

Não desças do teu céu de solidão,

Pomba da verdadeira paz,

Imagem de nenhuma servidão!

Diário IX

Rescaldo

Coimbra, 26 de Fevereiro de 1945 — Com que então, grande passeio? — dizia-me hoje um amigo, com ar de censura amável. E não me foi possível fazê-lo compreender que atravessar serras e vales por estradas intransitáveis, dormir com percevejos em camas imundas, comer mal e a desoras, e tocar a carne viva da nossa miséria social, não é propriamente passear, mas sofrer. Verdade seja que não tinha grande empenho em convencê-lo disto. Quem é capaz hoje em dia de convencer alguém do apostolado natural da terra? Chamavam logo à coisa patriotismo, nacionalismo, eu sei lá que barbaridades! De modo que é melhor assim: passeio. As palavras odientas ficam em paz no vocabulário, e eu guardo nos olhos e no coração aquela pobre rapariga que um curandeiro matou numa aldeia de que já nem sei o nome, a pro-vocar-lhe um aborto, e o Zêzere obstinado e beirão a rilhar fragas ao luar, numa curva namorada, branca e lavada como um seio.

Liberdade

Flor de liberdade

 

Sombra dos mortos, maldição dos vivos.

Também nós... Também nós... E o sol recua.

Apenas o teu rosto continua

A sorrir como dantes,

Liberdade!

Liberdade do homem sobre a terra,

Ou debaixo da terra.

Liberdade!

O não inconformado que se diz

A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,

Vivos amortalhados,

Passados e presentes cidadãos:

Temos nas nossas mãos

O terrível poder de recusar!

E é essa flor que nunca desespera

No jardim da perpétua primavera.

                                                                       (Orfeu Rebelde)

Fundão

Do Fundão, hoje cidade, guardo a memória dos dez anos e cinco sequentes passados na contemplação da majestade das duas serras: a da Gardunha sobranceira, erecta e atractiva; a da Estrela ao longe brilhando na neve desejada, mas raramente sentida no fundo do caldeirão da Cova da Beira. Enfim, gratas lembranças do tempo feliz da inocência!

Fundão, serra da Gardunha, 24 de Fevereiro de 1945 — Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerês a Monchique e do Caldeirão a Bornes, não tenho sossego. E sem saber ao certo para quê! Não sou geógrafo, tenho um patriotismo suspeito, sou fraco apreciador de petiscos, de modo que nem eu chego a saber por que é tanta peregrinação. Mas continuo, e só não amiúdo os passos por não ter saúde, nem tempo, nem meios. Talvez sem eu ter consciência disso, cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das cousas, expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado nenhum. Aqui encolhe-se, ali espalma-se, acolá afunda-se. Como acontece num grande livro, que tem páginas para lágrimas e páginas para sorrisos, assim a natureza conta uma história alegre em Viana e uma história trágica em S. Vicente.

Diário III

Zeca Afonso

Faz hoje vinte anos que morreu o grande cantor da liberdade. Dizer da sua importância no panorama musical português e na luta travada pela liberdade é repetir à exaustão lugares comuns já gastos. A efemeridade do que é humano trá-lo hoje praticamente esquecido, mas a sua mensagem permanecerá enquanto houver alguém sem liberdade neste pequeno mundo que é o nosso. Há vinte anos rendi-lhe homenagem através das palavras com pretensão de poéticas; Hoje aqui as reproduzo como tributo de gratidão por aquilo que nos legou.

 

 “O CANTOR”

 

As palavras faltaram

nos lábios emudecidos

da liberdade encarnada

numa guitarra plangente.

 

E por sobre notas secas

as cordas vibraram gritos

de revolta e libertação

de anseios reprimidos.

 

Mas nada pode calar

o grito intempestivo

da justiça agrilhoada

nas prisões mais hediondas.

Por isso um dia houve

em que as esperanças

tanto tempo incontidas

estalaram em alegria.       G. Monteiro / 23.02.1987  

 

Portugal

Lisboa, 22 de Fevereiro de 1983 - Não vale a pena ocultá-lo. O país vem a Lisboa como vai ao estrangeiro, com o mesmo alvoroço, o mesmo peraltismo, a mesma liberalidade e a mesma galhardia despreconceituada. Vê, ouve, goza, esportula e regressa a casa como de Paris. Com a inebriada semsação de que, sem o parecer, esteve ausente da pátria em breves e aventurosas férias clandestinas.

 

Figueira da Foz - De vez em quando, a propósito e a despropósito, venho desaguar a angústia neste mar desassossegado. Tenho a sensação de a deixar embalada no único regaço que a merece.

Diário XIV / XV

Poesia

CARTA FAMILIAR

 

Poeta irmão, não sujes as palavras.

Lembra-te do futuro!

Guarda as pedras da obra

Na virgindade austera da pedreira,

Até que te visite a inspiração.

Tu, que és o homem da pureza inteira,

Precisas da pureza da expressão.

 

Diário IV  (Coimbra, 21 de Fevereiro de 1949)

Beiras

    Monsanto, 20 de Fevereiro de 1949 — Ver Portugal de um miradoiro destes, a Estrela além, escalvada e coberta de sanatórios, e a campanha em baixo, latifundiária e vazia, é ler toda a sua história e auscultar toda a sua vida. É estar à eterna janela florida que qualquer nossa povoação tem, a espreitar, num lindo dia de sol, o largo da matriz, onde o senhor da terra dá, por devoção, uma malga de caldo a um pobre.

Diário IV

Diário...

    Na véspera da carnavalada (é bom existirem estas festas para se fazer alguma catarse social - a outra fica para os estádios de futebol ou para a palhaçada da política) nada mais contrastivo e reconfortante do que ouvir a verdade da boca dos mestres e beber nelas o humanismo:

Coimbra, 19 de Fevereiro de1988 - A convicção com que eu às vezes engano os doentes! Mas ser médico é também isso:ter capacidade de mentir persuasivamente quando a verdade é o oposto da esperança.

 

Diário XV

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