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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Carta de Amor - José Régio

Ouve-me!, se é que ainda

Me podes tolerar.

Neste papel rasgado

Das arestas da minh'alma,

Ai!, as absurdas intrigas

Que te quisera contar!

Ai os enredos,

Os medos,

E as lutas em que medito,

Quer dê, quer não dê por isso,

Sem descansar

Um momento...!

Quem sofre - pensa; e o tormento

Não é sofrer, é pensar.

O pensamento

Faz engolir o vómito de fel...

Ouve! se sou cruel

Neste papel queimado

Dos incêndios da minh'alma,

é de raiva de que embalde

Te procure dizer sem falsidade

Coisas que, ditas, já não são verdade...

E procuro eu dizê-las,

Ou procuro escondê-las?

E procuro eu dizer-tas,

Ou procuro a vaidade

De mas dizer, a mim, de modo que mas ouçam

Esses mesmos que desprezo,

E cujo louvor me é caro?

Não me acredites!

O que digo,

Antes ou depois, o peso;

E não!, não é a ti que me eu declaro!

Sei que me não entendes.

Sei que quanto melhor te revelar

O meu mundo profundo,

O fundo do meu mar,

Os limos do meu poço,

O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)

Menos me entenderás,

Tu..., - a minha metade!

Por isso me não és senão vaidade,

Meu amor!, meu pretexto

Deste miserável texto...

Vês como sou?

Mas sou pior do que isto.

Sabe que, se me acuso,

é só por vício antigo

De me lamber as mãos e agatanhar o peito,

De me exibir a Cristo!

Sabe que a meu respeito

Vou além de quanto digo.

Sabe que os males que ora uso,

Como quem usa

Cabeleira ou dentadura,

São a pintura

Que esconde os mais verdadeiros,

De outro teor...

E sabe que sou pior!:

Sabe (se é que o não sabes)

Que ao teu amor por mim foi que ganhei amor.

Que a ti..., sei lá se te amo.

Sei que me deixam sozinho

Ante o girar dos mundos e dos séculos;

Sei que um deserto é o meu caminho;

Sei que o silêncio

Me há-de sepultar em vida;

Sei que o pavor, a noite, o frio,

Serão jardim da minha ermida;

Sei que tenho dó de mim...

Fica tu sabendo assim,

Querida!,

Porque te chamo.

Mas amar-te?!

Não!, minha vida.

Não! Reduziram-me a isto:

Só a mim amo.

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